Há diversas formas de sentir e medir o tempo. A representação visual da pesquisa sobre as narrativas dissidentes no Instagram no formato de diferentes calendários procurou responder algumas questões interessantes sobre a relação dos acontecimentos cotidianos e grande parte da produção imagética veiculada nas redes.
A relação temporal e cronológica, inerente à estrutura visual de um calendário, nos permite acompanhar a passagem do tempo e seus marcos, efemérides e imprevistos. Porém, no feed das redes sociais, essa temporalidade se apresenta embaralhada.
O Calendário Dissidente foi projetado para organizar a ramificação de narrativas interconectadas e embaralhadas pela lógica algorítmica das redes, que desobedece a ordem temporal e cronológica dos fatos. A estrutura narrativa do calendário, explicita a metodologia de extração da coleta de dados, que seguiu uma ordem cronológica, organizando as imagens por dia, mês e ano. Proporciona, desta forma, a visualização da memória gráfica brasileira, retomando sua história política e social desde o início da gestão Bolsonaro, empossado em 1 de janeiro de 2019, de forma linear e rizomática, na medida em que filtros e buscas por hashtag temáticas proporcionam múltiplas leituras de outras camadas narrativas. A escolha deste formato partiu intuitivamente de uma necessidade formal e diagramática de organização do banco de dados (as imagens-mensagens), suas diversas camadas narrativas e ramificações temáticas, no sentido deleuziano.
A comunicação por imagens, uma das principais características da cultura visual contemporânea (NAVAS, 2016; BEIGUELLMAN, 2021; CASTELLS, 1999), instaurou um modo ainda mais seletivo de nos apresentar o que devemos ver, ouvir, ler. Os algoritmos trabalham na seleção do que supostamente nos interessa, baseado nos hábitos da navegação on-line, nas imagens e nas pessoas que seguimos e curtimos e “compartilhamos” afetos, imagens, pensamentos. Instaura-se uma bolha de comunicação e de notícias. E ainda, uma bolha estética, na medida em que seus gostos acabam sendo influenciados pelo o que você vê e lê, os lugares onde frequenta, o que te sensibiliza emocionalmente, politicamente como ser humano domesticado. A cultura visual não é neutra, nos lembra Boylan (2020).
Historicamente, o calendário é usado como instrumento “controlador do tempo” pelos povos do oriente e do ocidente desde a antiguidade. Como peça gráfica, ilustra o que deveria ser lembrado, cultuado e respeitado.
“Deriva de observações e de cálculos que dependem também do progresso das ciências e das técnicas. Interessar-nos-emos aqui não apenas pelos sistemas de calendário das sociedades humanas, mas também pelos objetos– calendários e almanaques – através dos quais os homens compreenderam e compreendem tais sistemas. O calendário, objeto científico, é também um objeto cultural” (LE GOFF, 1990, p. 475).
Em Calendário, Jack Le Goff (1990) nos brinda com uma antologia sobre diferentes sistemas de calendários adotados por várias sociedades e culturas ao longo da história. Ele destaca o calendário como um elemento fundamental para os humanos na compreensão de sistemas organizadores do quadro temporal, da vida pública e cotidiana, ou um objeto religioso, político e cultural. Concebidos cientificamente por astrônomos desde antes da era cristã e posteriormente adaptados a partir de diversas visões de mundo e diferentes hábitos culturais, sociais, climáticos e geográficos, o autor levanta os tipos de calendários distintos e como este objeto “regimental” era manipulado por reis, revolucionários, políticos no poder, religiosos, laicos etc.
“Depositário dos acontecimentos, lugar de potências e ações duráveis, lugar das ocasiões místicas, o quadro temporal adquire um interesse particular para quem quer que seja, deus, herói ou chefe, que queira triunfar, reinar, fundar: ele, quem quer que seja, deve tentar assenhorear-se do tempo, tal como do espaço. O uso das datas ‘ano m da república’, ‘ano X do fascismo’ é a sobrevivência moderna (em parte laicizada) de um antiquíssimo princípio” (DUMÉZIL, 1935-36, p. 240, apud LE GOFF, 1990, p. 421).
Na China, por exemplo, o calendário sempre foi manipulado pelo imperador chinês como um direito real. O calendário oficial era traçado pelos astrônomos para reger toda a terra chinesa. Tem-se registros de que no ano de 110 a.C. o imperador Wu celebra um sacrifício ao Céu (fêng) ligado à reforma do calendário e no ano de 106, adota uma nova Casa do Calendário (Ming T’ang). No ocidente, mais precisamente em Roma em 46 a.C., Julio César reforma o calendário romano influenciado pelos conselhos de Sosígenes, astrônomo grego de Alexandria, e em 1 de janeiro deste ano passa a ser adotado o calendário conhecido como juliano. Período que coincide com dez anos de ditadura e poder absoluto sob o comando de César.
No início da era cristã, na Europa, os calendários sofreram também forte influência religiosa, já que o cristianismo e o poder estavam intimamente relacionados. Feriados como a Páscoa, o Natal, aniversários de reis e de cidades como Roma e Constantinopla e o domingo como dia de descanso marcavam as festividades e as datas. Este calendário só será reformado em 1582 pelo papa Gregório XIIl, o papa que operou a reforma e batizou o calendário conhecido como gregoriano. Com o tempo houve uma laicificação dos calendários, aponta Le Goff. E no sistema de calendário tradicional, as liturgias religiosas seguem um calendário independente do calendário adotado por todos.
Para os povos indígenas no México e no Arizona, o sistema de medida do tempo está relacionado às questões cósmicas e divinas, determinantes para adotar calendários regidos pelo ciclo lunar, com datas específicas para algumas divindades, senhores das estações. Vale destacar os “calendários falantes”, adotados por tribos africanas para regular a periodicidade dos rituais religiosos ou mágicos. São datas a serem seguidas e “obedecidas” pois são vitais à vida daquela sociedade e cultura. Cada patriarca de determinado clã se responsabiliza em anunciar o “calendário falante”, colocando em evidência a importância da transmissão oral dos costumes e a função cultural, social, religiosa e política do calendário.
O primeiro calendário dissidente: revolução francesa
A tentativa de reforma do calendário gregoriano pelos revolucionários nos apresenta a função ativista deste objeto cuja função principal é ritmar nossos dias. “O calendário revolucionário respondia a três objetivos: romper com o passado, substituir pela ordem a anarquia do calendário tradicional, assegurar a recordação da revolução na memória das gerações futuras” (LE GOFF, 1990, p. 491).
A ideia de memória política aparece aqui como importante dado cultural na medida em que os revolucionários estavam preocupados em perpetuar datas e acontecimentos históricos fundamentais para a cultura e sociedade francesa. Era um novo tempo que deveria ser marcado. O conceito de universalidade também merece destaque pois, se distanciando da religiosidade, a Convenção responsável pela formulação deste calendário adotou simbologias ligadas às condições naturais e climáticas, além da sonoridade das palavras.
A partir do relato de Le Goff sobre a experiência do “calendário revolucionário” podemos dizer que este também representava uma outra categoria de contagem de tempo, as eras. Elas explicitam as relações entre tempo e poder e as relações socioeconômicas que giram em torno do calendário como os pagamentos, os impostos estatais, o trabalho etc. A própria origem da palavra calendário deriva do latim “calendarium” que significa livro de contas. Data marcada pelo termo “calendae”, o primeiro dia do calendário romano (Ibid, 1990, p. 494).
A partir de Le Goff (1990) vemos que historicamente as relações de tempo e poder são representadas pelas ações humanas, da natureza e por uma vasta produção iconográfica que marcam a passagem cronológica do tempo. Esses sistemas de representação visual criam narrativas singulares sob o ponto de vista cultural de quem rege o calendário. Nesse sentido, faz sentido que adotemos um calendário dissidente ilustrado para explicitar a passagem deste conturbado período histórico a partir da perspectiva da população, da massa. Neste caso, dos usuários do Instagram.
Sistemas de representações visuais e objeto de cultura de massa
A diversidade temática e de linguagens visuais das peças gráficas dos calendários nos levam a considerá-los objetos de cultura material singulares nos quais conteúdos diversos da cultura erudita e da cultura popular são tratados em um gênero narrativo específico. Há infinitos tipos de calendários: os pessoais, os biológicos (regidos pelos ritmos circadianos), os lunares (como segue o calendário muçulmano até hoje), os solares, os regidos pela colheita, os pandêmicos, como o que estamos vivendo atualmente por conta da epidemia global do coronavírus. Todos, sem exceção, são ilustrados e marcados pelas produções e acontecimentos pessoais, pelas sensações e representações de um estado temporal regido sobre horas, dias, meses e anos. Vale lembrar que na sociedade moderna, o ano se tornou uma medida universal para contarmos os acontecimentos.
Devido à sua função primordial de informar e correlacionar dados importantes relacionados à determinada comunidade, o objeto calendário ganha popularidade e funções específicas de registrar, ensinar, explicar a todos, transformando-se assim em um objeto não só decorativo ou veículo de politização usado por reis e religiosos, mas como veículo de disseminação de informações importantes para ambas as pontas da sociedade: do burguês ao camponês, abrindo espaço para a produção e publicação de almanaques.
Dois dados curiosos sobre a reprodutibilidade técnica dessas peças e seus respectivos conteúdos: os primeiros calendários volantes eram impressos em xilogravura na França e na Alemanha e datam do século XV. Os primeiros almanaques, verdadeiros guias sobre assuntos diversos sobre a atividade humana, surgiram na Alemanha e foram as primeiras peças gráficas cujos conteúdos cediam lugar de conquistas e reis para temas ativistas como miséria e pobreza (Ibid,1992, p. 526).
Linguagens narrativas
Além de considerar os calendários peças gráficas materiais – mesmo quando peças digitais, ilustradas por imagens e ilustrações materializadas e plasmadas nas telas – considero que podemos tratar o objeto calendário não apenas como um suporte, uma mídia, mas como um gênero narrativo específico. Ontologicamente, observa-se o uso de diferentes tipos de iconologia referentes aos recortes temporais e temáticos propostos pelo “gênero” calendário. As relações entre tempo e acontecimento podem ser registradas em outros sistemas de calendários, além dos adotados tradicionalmente por determinada cultura para reger o ano e as efemérides, como feriados nacionais e religiosos.
O Calendário Dissidente constitui neste trabalho um gênero narrativo que se utiliza da visualidade como linguagem. Organizadas cronologicamente, compõem narrativas visuais dissidentes de acontecimentos políticos do Brasil. São memórias gráficas organizadas por recortes temáticos capazes de narrar perfeitamente, por meio do design de comunicação, a memória de um povo em determinado momento histórico. Tornam-se um gênero narrativo e um modo de ver e apreender.
A partir de outra perspectiva, ainda investigando as possibilidades de linguagens narrativas, vale citar as análises semióticas de Roland Barthes (1978). Em Mitologias, o autor faz diversas análises relacionadas aos objetos e seus significados, a partir do repertório cultural e local. E contribui para a pesquisa com outros modos de ver por meio da leitura de imagens. Sobre o mito do vinho na França, por exemplo, o semiólogo faz uma leitura totêmica da bebida. O vinho é suporte de uma mitologia variada que aceita contradições. Sua cor vermelha, sanguínea, remete a algo vital. A bebida, na França não está associada à embriaguez, é um prazer universal, do trabalhador do campo ao intelectual, o vinho não está separado ao seu modo de existência (Ibid, p. 51). Assim, por meio da descrição de cenas cotidianas e sobretudo da leitura dos pormenores e dos detalhes dos objetos, o autor parece congelar imagens estáticas para extrair muitas análises sobre a cultura e a sociedade local em determinado espaço temporal. Em textos breves, lúcidos e precisos, nos apresenta outro léxico de linguagem singular, uma possibilidade de gênero narrativo sobre a semiologia das imagens.
Os mitos de uma sociedade estão, portanto, presentes na maneira com que são representados os homens, mulheres, as figuras políticas, os objetos (índices sígnicos). Na plasticidade, ornamentação e composição cênica das imagens escritas e lidas. A compreensão das imagens, por meio de Barthes (1978) nos convida a transitar inevitavelmente entre a fábula narrativa e a realidade e são fonte de inspiração para as análises das narrativas visuais do Calendário Dissidente.
A contribuição de Le Goff (1990) e Barthes (1978) para a pesquisa traz uma referência historiográfica e semiótica de modos de narrar por meio de imagens e acontecimentos cotidianos. Para além de toda a parafernália informacional envolvida na produção e circulação de imagens nas redes e a contextualização sociopolítica – assunto que norteia alguns capítulos da tese –, essa visão proporciona uma outra perspectiva de leitura, outro modo de ver o calendário como peça gráfica situada na história sociocultural e política e brasileira.
A tese não tinha como objetivo inicial adotar o formato de calendário como estrutura para publicar as imagens das quais nos referimos ao longo da pesquisa. Entretanto, admitimos que a adoção deste gênero narrativo nos experimentos Calendário Dissidente e Pantone Político provocou outras investigações sobre os meios de circulação dos conteúdos da tese. A publicação de um site no qual os capítulos formam uma constelação sistêmica, organizada em torno dos experimentos gráficos, é resultado desse estudo de linguagem no campo do design. Buscamos, dessa maneira, alternativas formais e rizomáticas para deixar esta pesquisa acessível a públicos diversos e situados além da academia.