Cultura visual e imagem digital

Neste tópico traremos uma visão caleidoscópica sobre diferentes visões de autores que contribuem na reflexão da evolução da imagem – já considerada apenas um adereço ilustrativo de um texto histórico ou elemento decorativo e, hoje, transformada em um objeto visual com narrativa e visualidade própria. Este panorama complementa os conceitos dos verbetes do Glossário Imageria e reforçam a linha adotada na pesquisa para analisar a imagem-mensagem a partir de uma visão multidisciplinar.

A evolução e o futuro das imagens contemporâneas estão fortemente ligados à cultura das mídias – uma cultura intermediária entre a chamada cultura de massas e a cibercultura: um movimento que se dá em torno de inovações tecnológicas e transformações socioculturais (SANTAELLA, 1998). Este fenômeno, denominado nesta pesquisa como cultura das redes, modifica e impulsiona o modo de produzir e consumir imagens, favorecendo o surgimento de novas estéticas. São manifestações de linguagem que consumimos diariamente na forma de fotografias, ilustrações, audiovisuais expandidos, na forma de várias naturezas de imagem, produzidas por humanos ou geradas por inteligências artificiais.

A cultura visual é uma linha de estudos que surgiu no final da década de 80 com o objetivo de ampliar a discussão sobre a visualidade no mundo contemporâneo. A partir de uma perspectiva menos acadêmica, mais urbana e mais articulada entre sociologia, filosofia, semiótica, psicologia, comunicação e cibernética, esta corrente ganhou força nos Estados Unidos e na Inglaterra, sendo denominada dentro da área dos “Cultural studies”. Com uma abordagem voltada à visualidade – “Picture turn” em oposição às análises linguísticas – essa linha de estudos reclama por um modo de análise próprio que vai além dos discursos que as imagens representam (MENESES, 2003, p. 21).

Por meio dos conceitos introduzidos pela corrente norte americana, liderada por Nicholas Mirzoeff, pesquisador da imagem, mídia e comunicação e professor titular dessa disciplina na New York University (NYU) – investigamos como se deu a evolução da imagem digital e seu amalgamento com as novas tecnologias, gerando diversas naturezas de imagens maquínicas e o surgimento de novas práticas estéticas e novas poéticas.

Estamos falando de imagens e linguagens que carregam em si muitas camadas invisíveis de manipulações humanas e não-humanas, e de uma complexidade inerente ao fluxo informacional no qual circulam. Por uma perspectiva multidisciplinar a cultura visual procura compreender as transformações das imagens incorporando a comunicação de massa e a popularização da fotografia e das artes visuais, considerando a imagem, o objeto e a prática dominante na contemporaneidade. Como método, privilegia também uma abordagem que inclui a fenomenologia e a psicanálise de Freud e Lacan, nas quais o inconsciente do receptor deve ser incorporado à análise da imagem.

“Não se trata de uma história das imagens, nem depende das imagens em si mesmas, mas sim dessa tendência de plasmar a vida em imagens ou visualizar a existência, pois o visual é um lugar sempre desafiante de interação social e definição em termos de classe, gênero, identidade sexual e racial” (MIRZOEFF, 2003, p. 20).

Alexis Boylan (2020) nos ajuda a atualizar o conceito dessa linha de estudos na contemporaneidade, incorporando o contexto das redes sociais. Partindo do pressuposto que somos direcionados desde a infância a criar uma cultura visual baseada nos gostos e valores dos nossos pais e da comunidade na qual fomos educados, a pesquisadora questiona quem está curando a nossa “cultura visual ampliada” hoje. Para a autora, os objetos visuais são usados desde sempre para influenciar, narrar, esconder e revelar. Falar da cultura visual das redes significa pensar também no desconhecido, no não revelado e no potencial de violência que as imagens podem causar, pois a imagem nunca é neutra, tem valores e muito poder (Boylan, 2020, p. XVI).

No caso das redes sociais, verificamos que a participação das disputas de narrativas constitui jogos de visibilidades e envolvem a participação de diversos atores, o consumidor e também produtor de imagens. São regimes de visibilidades domesticadas pelas posições políticas e pelo repertório cultural de quem media a produção e a circulação da imagem. Essas imagens circulam em circuitos restritos, em bolhas protegidas pelas redes de amigos, ou, pelas instituições e pelas grandes corporações que manipulam dados e decidem o que deve ser visto, quando e como, tema a ser tratado no tópico Narrativas visuais no Instagram.

Apesar de assumimos que o público das redes sociais tem acesso às imagens postadas globalmente, a lógica de navegação e consumo de imagens nessas mídias obedece a um conceito participativo de curtidas, compartilhamento e engajamento. A peça de design de comunicação, vídeo ou fotografia, quando postada, é visualizada inicialmente pelos clusters de seguidores que, de alguma forma, têm alguma afinidade com o usuário (autor ou mediador e receptor). O comportamento padrão é interagir, julgar, compartilhar. Ou seja, há um primeiro filtro de vigilância do que circula nas redes, realizado pelas pessoas usuárias que criticam ou elogiam posts que dizem respeito ao que pensam, e estão relacionados ao gosto, ética, repertório cultural ou posicionamento político.

O segundo filtro de vigilância ocorreria antes e depois da postagem e são feitos pelos algoritmos das grandes corporações GAFAM, que controlam o que é postado na rede, para quem e quando (BRATTON, 2015). Ou seja, estamos diante de imagens sujeitas permanentemente às políticas de vigilância, regimes de visibilidade e ubiquidade das tecnologias de reprodução das imagens no fluxo da internet, controlada por essas nuvens. Ver Imagem vigilante.

Há ainda uma outra discussão ética, de compromisso com a verdade e respeito às pessoas e às comunidades que possam estar sendo expostas na imagem. Sabemos que as possibilidades de edição “ready to use” nos aplicativos da câmera celular são um convite para a manipulação de imagens, a fim de promover desde alterações cosméticas ou discursos e narrativas de grupos extremistas que praticam a desinformação sob forma de postagens de fake news. Ou seja, na medida em que somos chamados a participar na construção dessas narrativas colaborativas, perdemos o controle de como as imagens vão se comportar.

Os indexadores algorítmicos embutidos nas imagens (metadados que contém tags de rotulação de visão computacional, geolocalização, data, hora, autor e palavras-chave rastreadas no caso de haver legenda), definem como essa será classificada e lida pelos bots. A participação do usuário, com as apropriações de linguagens visuais, verbais e de outras mídias, os contextos socioculturais e os discursos políticos que sustentam as narrativas também compõem a natureza desta imagem instável e em permanente modificação, como pode ser visto no experimento Calendário Dissidente.

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A passagem do visível para o visual

A fim de situar a discussão o uso da imagem como elemento central nas peças de design de comunicação, traçamos uma breve história da visualidade por meio das contribuições trazidas por Meneses (2003). Cabe aqui um breve apontamento referente ao viés cultural e social, associado à imagem e à visualidade. Segundo o autor, há uma dificuldade em encontrarmos um estudo que trate a imagem como objeto, a partir de sua materialidade das representações visuais – a visualidade – na história da arte, na história da fotografia e na história do design “as imagens como coisas que participam das relações sociais, mais que isso, como práticas materiais” (MENESES, 2003, p.14).

A cultura associada à visualidade na qual a imagem passa a ser narrativa, artefato material, imagem e mensagem só vai ser reconhecida na década de 60. Essa passagem para a visualidade está preocupada em passar do visível – quando era considerada fonte histórica, de apoio a fatos textuais ou descobertas científicas – para enxergar a natureza discursiva da própria imagem. Esta abordagem, conhecida como “antropologia visual”, passa a incluir nas análises da visualidade da imagem, os modos de produção, circulação e consumo e a interação entre o observador e o observado.

Parafraseando o conceito “tecnologias de interação social humana”, cunhado pelo antropólogo Alfred Gell em “Art and agency” (1998), Meneses (2003) sugere que devemos pensar a imagem e a arte como agenciadoras de novas socialidades, como objetos de mobilização e interação humana. O poder de agenciamento das imagens e suas interações com os usuários são questões-chave para compreendermos a imagem contemporânea das redes, classificada pelo autor em três modalidades:

  • o documento visual como registro produzido pelo observador;
  • o documento visual como registro, ou parte do observável, na sociedade observada;
  • a interação entre observador e observado (Ibid, p. 1)

Nessa nova categorização de “visualidade”, podemos dizer que há uma transferência do caráter social e político (com função panóptica) sob esse olhar, contemplação, dar-se a ver ou ser visto, para a função da imagem. Essa função foucaultiana de novas práticas discursivas e a espetacularização da vida cotidiana da sociedade nas redes é outro ponto que nos interessa para o entendimento da cultura visual digital. Assim como o conceito de espetacularização da vida, de Debord (1958), também lembrado por Meneses (2003).

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Além do que se vê

No livro O que vemos, o que nos olha, o filósofo e pesquisador Didi-Huberman (1998) nos propõe a analisar a ambiguidade das imagens por uma instância dialética, usando estratégias fenomenológicas e psicanalíticas. O que se vê no objeto retratado e o que ele representa é relativo, na medida em que a memória vai ressignificar o que é visto, atribuindo outras visibilidades, de acordo com o repertório e experiência de cada um.

O autor interpreta o conceito de aura em Walter Benjamin: uma trama singular de espaço e tempo [Sidenote: Em O que vemos, o que nos olha, p.147-155, Didi-Huberman aprofunda o legado do conceito de Walter Benjamin, sobre aura na publicação “Petite Histoire de la photopraphie” em “L’ouvre d’art à l’ère de sa reproductivité technique” (1931).] (BENJAMIN, 2012). Ou seja, uma trama dentro de um acontecimento único, que nos cerca. A aura seria como um espaçamento travado do olhante e do olhado, do olhante pelo olhado. Há nesse espaço-tempo uma ambiguidade de uma imanência visual, um duplo olhar (em que o olhado olha o olhante), presente nesse jogo de “poder de proximidade”, decorrente da reprodutibilidade da fotografia. Para Didi-Huberman, existe um perigo de fazermos uma leitura mais fatalista sobre a aura das imagens, na medida em que a modernidade e a tecnologia nos deram a possibilidade de manipular as imagens, essas passam a ser reproduzidas, multiplicadas e veiculadas, se afastando da noção de “única apariçāo” que caracterizava o objeto visual e a fotografia tradicional (DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 147-155).

A partir dessa interpretação de Didi-Huberman, compreendemos que para lermos a imagem contemporânea das redes sob o prisma da “dupla distância”, precisamos considerar a visualização e a recepção das imagens na tela do usuário. Sob este prisma, assumimos que essa distância é sempre virtual, dialógica; a leitura da imagem vai além do objeto retratado e pode ser lida (percebida) de três formas:

  1. Sensação de distanciamento “de quem olha”. Nesse caso, a imagem em questão é recepcionada como mais uma imagem no fluxo das imagens “invisíveis” das redes sociais;
  2. Sensação de proximidade, uma conexão de outras instâncias, referente à memória do receptor. Nesse caso a imagem passa a ter outros significados, compreendidos e apreendidos por meio daquele objeto-imagem. O receptor aproxima-se da imagem, se identifica (ou nāo) com aquele momento sociopolítico, conecta-se afetivamente com a foto. Provavelmente ocorre uma associação com outros eventos e outras imagens guardadas em sua memória.
  3. Conectar-se com o que é visto por meio dos aspectos formais da imagem: ela fisga o observador, suscita espanto e curiosidade, por meio da Gestalt, cores, forma, jogos de luz e sombra, composição; e pela sua poética. E partir dessa proximidade com a imagem se dá uma experiência sinestésica.

Ainda na linha fenomenológica e a partir do ponto de vista do receptor, Rubinstein (2020) aponta a importância da neurociência e das mudanças de comportamento do homem contemporâneo nesse tipo de análise. O ser humano está permanentemente ativando seu cérebro com imagens, estímulos visuais, respostas determinadas e automáticas. Estimulados por imagens, a noção dos acontecimentos é vivenciada para além das representações visuais primordiais suscitadas pela “fotografia”, no sentido ontológico onde a “verdade”, a “compreensão” e o ‘conhecimento” pautavam as representações imagéticas (científicas, históricas, familiares). O autor ironiza que viramos um pouco deuses, pois nossa capacidade de representar o mundo por imagens vai além das nossas capacidades cognitivas, além da maneira em que vemos, ao tornarmos reféns de uma nova teologia tecnológica.

As duas considerações acima introduzem dois aspectos significativos. Didi-Huberman (1998), nos provoca a ver para além do que se vê e aponta o imaginário e a memória como parte dessa experiência. Já Rubinstein (2020), aponta toda a camada invisível das estratégias de inteligências artificiais por trás das imagens que vemos na rede. São operações da ordem do sobrenatural e do inconsciente humano e maquínico.

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As imagens maquínicas

Sobre o ponto de vista da evolução técnica, os meios de produção da imagem e os efeitos sobre as representações, Nöth e Santaella (1998) propõem três paradigmas básicos para elucidar o entendimento da evolução da imagem e a interdependência entre técnica e linguagem visual: o paradigma pré-fotográfico, no qual a imagem é artesanal e a fisicalidade do suporte e a materialidade impõe sua presença; o paradigma fotográfico, cujo processo de produção de origem ótica passa por um processo químico ou eletromagnético; e o paradigma pós-fotográfico, quando as imagens são sintéticas, resultado do casamento entre um computador (e suas operações abstratas, modelos e cálculos) e uma tela de vídeo. Este processo dá espaço a uma nova ordem visual, a imagem numérica e está em constante transformação e interpretação, gerando uma imagem infográfica, ou uma imagem interpretada.

Do ponto de vista da evolução técnica, Rubinstein (2020), elucida como a pós-fotografia está engendrada no nosso cotidiano e quais são as atribuições dessa imagem técnica e informacional. Para ele, computadores e processadores algorítmicos não refletem a realidade, eles produzem, distribuem e multiplicam informações a partir de implementações tecnológicas e protocolos linguísticos. Este processo substitui o veredicto do modelo fotográfico tradicional do espelho (imagem-sujeito) por movimentos dos fluxos informacionais, uma interpretação algorítmica que resulta em uma forma visual. Como espectadores, assistimos passivos a este processo.

O conceito de representatividade em oposição ao de autenticidade, auxilia na compreensão de como os aparatos tecnológicos se expandiram e desenham uma nova infraestrutura diagramática, desdobrando novas condições e possibilidades. As relações entre o que é provável, o que é possível e o que é real (relacionado ao conceito de potencialidade) estão intrinsecamente ligadas ao contexto cultural, político e ideológico por trás desses mecanismos (RUBINSTEIN, 2020, p. 116). Os modelos representacionais do conhecimento não são mais estáticos, não obedecem a uma “realidade objetiva” e rejeitam as premissas da representação e do pensamento ocidental baseado nas relações “sujeito-objeto, imagem e coisa, forma e conteúdo, identidade e diferença, substância e essência” (Ibid, p. 2-5).

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Clone

Os aplicativos das redes sociais têm outro modelo de reprodutibilidade técnica no qual os modelos e a genealogia da representação das peças iconográficas passam a conviver com a repetição das imagens. As postagens são clones de objetos destinados a repetir e a circular inúmeras vezes. Espécies de clones algorítmicos gerados pelos usuários com o auxílio das “ferramentas de inteligência artificial” disponíveis nos aplicativos.

No sentido teológico e sociopolítico, esse fenômeno da clonagem e reprodução remetem aos santinhos (religiosos ou de candidatos políticos em época de eleição) e aos “santinhos” das redes, as imagens mais icônicas que viralizam e invadem todos os nossos dispositivos e aplicativos. A repetição torna a imagem um ícone, independentemente da vertente política. De Marielle Franco a Bolsonaro, um amplo leque de imagens torna-se eternizada e busca representar um posicionamento, uma verdade, sob certo ponto de vista.

Sobre esta imagem clonada, Van Essen (2020) afirma que estamos diante de imagens reais que são ficcionais, lidas e geradas por códigos. O “novo real”, uma imagem pós-humana, atualizada permanentemente em outro tempo e espaço.

As imagens digitais, criadas como peça de produção de comunicação, passam a escalar seu potencial e sua função sociopolítica quando clonadas. Para além da estética, é preciso também considerar a visão computacional e os processos automatizados e algorítmicos que acrescentam camadas interpretativas. As narrativas compostas por #ativistas como #mariellepresente são um exemplo dessas imagens fragmentadas e clonadas que compõem uma história da experiência coletiva sobre um fato ou uma causa. E ainda, mostra a potencialidade da participação do usuário da rede na criação de uma narrativa coletiva. Ver o estudo de caso sobre as políticas de visualização das imagens de Marielle, realizado a partir de imagens extraídas da #mariellepresente, no tópico #ativismo: das ruas para as redes.

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Fragmentação na produção e na transmissão

Para além da mudança do que se vê, os meios de produção de imagem também alteraram a documentação fragmentada dos acontecimentos e o modo de produzir trouxe uma nova estética às imagens. Antes da internet e das mídias sociais, a transmissão dos acontecimentos políticos era realizada por meio de uma narrativa fotográfica e cinematográfica institucionalizada, para transmissão em televisão e jornal impresso e digital. Com as redes, essas narrativas passaram a conviver com as imagens independentes feitas com os smartphones de cidadãos que participam e estão dentro do acontecimento. As imagens dos “embedded” – o usuário que está dentro do acontecimento e registra o fato no calor do momento – desmistificam e diluem o monopólio dos detentores da produção e da veiculação da imagem, dando lugar a novos protagonistas, a uma mídia livre e desprendida de dogmas de composição e edição de imagens, de uma escola da fotografia documental para uma imagem mais solta, espontânea, que expressa em si os sentimentos de quem estava ali e vivenciou o acontecimento. Ver Imagem infiltrada.

A pesquisadora Ivana Bentes comenta a ecologia midialivrista, dentro dessas transformações tecnológicas e o surgimento de novos sujeitos sociais e políticos, vindo das minorias, “das bordas”, como ela diz, para dar visibilidade a uma realidade e a uma cultura que não é produto da indústria cultural e nem jornalismo realizado por corporações, “um campo que tem uma base social em expansão: os produtores simbólicos que disputam narrativas e que também são a nova classe trabalhadora do capitalismo da informação: o precariado ou cognitariado base de um emergente movimento social das culturas”. Estamos diante de uma produção realizada dentro de um contexto de um capitalismo informacional, capitalismo cognitivo, em que o conhecimento, o produto, chega a todos os meios sociais, mesmo que de forma desigual e assimétrica, complementa a autora (BENTES, 2019, p. 153).

Essa mudança de paradigma do ponto de vista de quem conta a história e como a narrativa se constitui mais democrática e, a partir de fragmentos de imagens de muitos autores e vozes, representa uma das características mais marcantes da cultura visual digital e das narrativas visuais abordadas neste trabalho. Ver #ativismo: das ruas para as redes.

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A natureza das imagens não humanas

A fotografia digital é representada por um amplo espectro de imagens de diferentes naturezas, algumas delas já apresentadas no glossário. As imagens em questão, são vistas além das superfícies materiais nas quais as enxergamos. Além da produção da interface bidimensional, temos os metadados referentes a diferentes aspectos das imagens, gerando novas tipologias, novas escalas de resolução impossíveis de serem vistas ao olho humano. Ou como a artista Yael Van Essen denomina, “genótipos fotográficos” (VAN ESSEN, 2020, p. 83).

Na biologia, “genótipo” refere-se à parte relevante do DNA, responsável pela transmissão das características genéticas parentais, portanto, as características de base, constantes. O contrário do fenótipo, que aponta as características físicas e comportamentais do organismo como tamanho, forma, atividades metabólicas e padrões de movimento. No contexto fotográfico, a artista aponta que a relação entre o genótipo e o fenótipo reflete a relação entre o visível – o que está na superfície, o fenótipo – e o que não pode ser visto – o genótipo –, o que facilita a identificação do fenótipo. (Ibid, p. 88).

Para Van Essen (2020), as novas bases de visão vão além da nossa capacidade biológica, geradas por um sistema de representação baseada na medição biométrica das imagens, um sistema construído de forma análoga ao sistema de visão humana. Essa proximidade, apresenta como a visão computacional e a programação de mecanismos de aprendizagem de máquina tem uma relação intrínseca com a evolução biológica dos seres humanos [Sidenote: Ler mais sobre visão computacional no tópico Aprendizagem de máquina e subjetividade maquínica.] .

A autora aborda a imagem genóptica a partir da tipologia “In-depth image” – imagem composta por metadados referentes a diferentes aspectos da imagem, extraídos de banco de dados de corpos humanos, gerados por não-humanos. E remete ao célebre texto “Proxy politics: signal and noise” de Hito Steyerl (2014), para quem 50% do que é produzido por smatphones é considerado sujeira “noise” pelos mecanismos de interpretação de imagens computadorizadas devido ao tamanho pequeno e à qualidade ótica empobrecida. Para que as imagens não apareçam tão ruins, o sistema algorítmico de aprendizagem e máquina profunda entra em ação. Essa operação de limpeza de ruídos visuais “noise cleaning” é baseada em outras imagens que estão na memória da câmera e tenta prever o que a imagem representa. Esse processo encadeia o “feedback loop”, sistema de interpretação de imagens que caracteriza os processos de aprendizagem profunda da visão computacional. Ver imagem pobre e imagem ruim.

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Um processo de tradução

Em “Refuse to let the syntaxes of (a) history direct our futures”, a pesquisadora e crítica de artemídia e netart Rosa Menkman (2020) nos convida a transgredir os limites impostos em novas resoluções e formatos das interfaces dos aplicativos de mídias sociais. Assume que a interface é sempre um efeito, um processo de tradução (muito embora sabemos que a experiência da tela pode estar amalgamada em uma variedade de possibilidades). A fim de entender o ofuscamento dos programas que usamos diariamente, a autora remonta a definição do termo “resolução”, desconstruindo os processos tecnológicos. Retorna a uma discussão sobre o deslocamento das questões ópticas para as questões numéricas: as novas medidas de contraste (luz) e resolução digital; e a densidade do pixel na imagem e o número de pixels por área. E propõe redefinir o termo resolução não a partir do campo óptico, como foi definido há dois séculos, e sim pelo entendimento das tecnologias e os procedimentos construtivos da imagem.

Há outros atores no processo de definição da resolução. Nesse sentido, o próprio usuário precisa se conscientizar que ao apertar os botões print, run, enter, ele se compromete com os settings e escolhas de determinado aplicativo e se torna refém e impossibilitado de fazer suas próprias escolhas na edição da imagem.

Christiane Paul (2011) também define a tela como um elemento agressivo, na medida em que atua como mediadora da luz da imagem digital, alterando a experiência do usuário com a imagem, pois cada aplicativo define a sua tela de um jeito, filtra suas escolhas e essas ainda variam de acordo com os sistemas operacionais. No Facebook, por exemplo, o conteúdo é deformado, as resoluções das mídias são encapsuladas e os usuários estão alienados sobre o que isso representa. São estratégias que carregam decisões políticas, históricas e ideológicas, complementa Menkman (2020, p. 123).

Nesse sentido estamos colecionando imagens e memórias que estão deformadas e adaptadas pela mecânica das mediações que essas imagens sofrem nas padronizações das plataformas. Vivemos a “reologia [Sidenote: Reologia é o ramo da física mecânica que estuda as deformações e o fluxo da matéria, especificamente o comportamento dos materiais ante seus limites de resistência à deformação. In: Dicionário Oxford.] dos dados”, como define a autora. Dentro deste conceito, pode-se dizer que há uma deformação dos fluxos líquidos para um estado de deformação dos sólidos. Os dados não são sólidos e podem, de um lugar para outro, mudar de resolução e de significado. Outro termo usado pela autora e que me parece preciso é “hiperopia tecnológica” – a incapacidade de o usuário ver claramente, uma miopia dos dados (Ibid, p. 125).

Van Essen (2020) considera os parâmetros maquínicos de limpeza das imagens como atos políticos, pois obedecem aos padrões normativos de uma sociedade e de uma cultura. Ou seja, os treinadores das inteligências artificiais são quem estabelecem os padrões e templates das fotografias publicadas nos aplicativos das redes sociais. O acúmulo de dados, conhecido como o fenômeno de repetição de imagens selecionadas usadas no processo de aprendizagem e rotulagem (label) de imagens, tem um viés decisivo.

Não é à toa que em sites como “This person does not exist” vemos corpos normatizados por uma perspectiva colonialista, nos quais são dominantes imagens de corpos de pessoas brancas, homens sorridentes etc. (BEIGUELMAN, 2020). Essa nova tipologia da imagem já vem com padrões algoritmos pré-estabelecidos, esvaziando a representação real do objeto, da fotografia traduzida por um processo químico em uma superfície material, como vimos com Nöth e Santaella (1998). Ver Galeria Uso de IA para fins artísticos e curatoriais.

Vale lembrar da obra “Você não tira uma fotografia. Você faz uma fotografia”, pôster tipográfico criado por Alfred Jaar com esta frase. Neste trabalho, reproduzido em grande tiragem, o autor replica a frase do célebre fotógrafo estadunidense Ansel Adams (1902-1984). Jaar quer se dirigir diretamente ao receptor, não só fotógrafos, artistas, documentaristas, mas todos, qualquer um que usa a imagem como meio de representação de linguagem. Sobre este trabalho, Moacir dos Anjos [Sidenote: Moacir dos Anjos, curador da exposição Lamento das imagens, exibida no SESC Pompéia (26/08-05/12/2021) como programação paralela à Bienal de São Paulo. Foi a maior retrospectiva das obras do arquiteto, cineasta e artista chileno Alfredo Jaar na América Latina. Ler verbete imagem lamento.] comenta que “afirmar, contrariamente, que fotografias são feitas, implica assumi-las como produções (e não mero registros) de realidade, em que inclusões e exclusões de sujeitos e situações são inevitáveis”. O curador aponta para o poder dessas imagens produzidas por qualquer pessoa, desafiando formas hegemônicas de compreender e organizar a vida, pautadas muitas vezes na afetação e na emergência da criação de uma imagem de consumo, de participação no jogo das mídias sociais (DOS ANJOS, 2021, p. 59).

Esta obra ilustra a banalização da imagem no contexto de superprodução das redes, como dado da cultura visual contemporânea. Podemos afirmar que o trabalho também critica a nebulosidade das fronteiras entre uma imagem real e uma imagem virtual. Nesse universo, – cujas práticas criativas se utilizam de técnicas e funcionalidades de assemblage, apropriação, clonagem – o real torna-se ficcional.

O fato do pôster ser impresso, um artefato material real, provoca também outras reflexões sobre a circulação de imagens-mensagens dissidentes. Essas ainda têm a potencialidade de serem veiculadas em ambientes urbanos, criando uma relação interessante entre o que acontece nas ruas e nas redes.

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A imagem informacional da qual estamos tratando nesse texto tem muitas tipologias e está em constante recontextualização. Há uma nova ecologia de informações baseadas no acúmulo de dados vindos de várias fontes e, muitas vezes, de lugares e tempos desconectados. A infraestrutura da rede modifica e altera essa imagem mudando dimensões e condições de visualização, o contexto é modificado de acordo com a arquitetura informacional da plataforma em questão.

No jogo narrativo das redes, as pessoas que interagem, curtem ou repostam as imagens “feitas” e postadas nas redes, aceitam determinada representação visual, dada como uma realidade, pelo autor da imagem. As imagens das redes podem limitar, portanto, a aceitação de uma realidade bastante restrita e muitas vezes errática – vide as fake news das correntes de imagens produzidas com a finalidade de distorção dos fatos, pelas redes organizadas por grupos bolsonaristas. Este potencial camaleônico da imagem das redes, como vimos na imagem metamórfica de Rancière (2013) e na imagem deslocada de Paul (2011), está sujeito a modificações infinitas, e aos interesses culturais e políticos das estruturas de poder das corporações as quais os mecanismos de visualização estão subordinados.

As tipologias de imagem apresentadas no Glossário Imageria e em alguns trabalhos da Galeria Uso de IA para fins artísticos e curatoriais são exemplos que contribuem para o entendimento da cultura visual digital. São evidências sobre a imagem contemporânea, sob a perspectiva de vários autores, de um paradigma sobre a fotografia.

Desta maneira, com essa visão caleidoscópica, buscamos compor o panorama no qual as imagens dissidentes se inserem e quais as funcionalidades embutidas nessa imagem ao notar que estamos diante de uma operação de linguagem e de manifestação estética e comunicacional.