Calendário Dissidente: cultura visual e memória política brasileira

O site Calendário Dissidente é um projeto que discute a memória gráfica e política dos principais acontecimentos sociopolíticos do Brasil, desde a posse do presidente Bolsonaro, 1º de janeiro de 2019 a 16 de novembro de 2021. A discussão é feita a partir do mapeamento das estéticas presentes nas imagens coletadas por meio da metodologia de visualização de dentro do banco de dados na rede social Instagram.

O Calendário funciona como repositório de narrativas e nos possibilita a visualização da variedade estética nas imagens que discutimos, pois elas são produzidas por mecanismos popularizados e acessíveis a todos os usuários de aplicativos de redes sociais para celulares. São produções que podem ser realizadas em tempo real, a partir da apropriação de imagens da mídia. Alguns posts analisados têm pouca elaboração, são rústicos. Já outros, são ilustrações vetoriais extremamente elaboradas e especialmente criadas para serem veiculadas nas redes. A imbricação entre tecnologia, reprodutibilidade técnica e a possibilidade de linguagens emergentes resultam na imagem-mensagem, destacada nesta pesquisa como uma nova imagem metamórfica (RANCIÈRE, 2013).

O Calendário também representa um projeto de colecionismo e curadoria de imagens da web. Ou seja, trata-se de um trabalho de coleta, arquivamento e edição dos arquivos visuais, compreendendo que desta ação desdobram-se reflexões teórico-metodológicas que fundamentam as análises da investigação.

As narrativas visuais publicadas foram coletadas a partir de seis hashtags: #designativista, #desenhosopelademocracia, #coleraalegria, #mariellepresente, #foragarimpoforacovid e #projetemos. E além das investigações acerca de linguagem, problematiza questões relacionadas ao arquivamento das imagens nas redes sociais, à visualidade dessas peças gráficas e à relevância dessa coleção de imagens-mensagens consideradas artefatos de design gráfico que compõem parte da memória gráfica brasileira.

Destaca-se o caráter colaborativo e experimental deste site, cujos objetivos extravasam a pesquisa acadêmica na medida em que o acesso ao site é aberto. O projeto é fruto de um estudo realizado na residência no Inova USP [Sidenote: A realização do site exigiu uma equipe multidisciplinar: um designer gráfico – a pesquisadora, idealizadora e designer das telas; os cientistas de dados Gustavo Polleti, Vinicius Akira Imaizumi, Vinicius Ariel dos Santos (POLI-USP) e Gustavo Braga (Insper) – integrantes do Inova USP; e o programador independente Marcelo Villela Gusmão – responsável pelo front-end.] . Com o uso de de IAs, buscamos filtrar as narrativas mais relevantes para apresentá-las ao público em geral. Desta forma, incentivamos a todos que participem na criação e veiculação de manifestações poéticas e dissidentes.

Como vimos em Narrativas visuais no Instagram, este aplicativo oferece opções de filtros para fotografias, diversos estilos de fontes para mensagens divertidas e biblioteca de emoticons. A adição de novos elementos gráficos a uma fotografia é incentivada e facilitada, e trata-se de um recurso disponível em simples “botões” para que o usuário produza o seu post. Procedimentos de copy and paste de imagens que circulam nas redes e a apropriação de imagens icônicas de personagens ilustres adicionam novas camadas estéticas a essas bricolagens digitais.

O fato de as legendas funcionarem como metadados (o uso da hashtag junto a uma palavra-chave) possibilita a busca por determinado tema e a consequente visualização de uma coleção de imagens acerca daquela hashtag. Esse acervo de imagens, de autoria diversa, permite vislumbrar a potencialidade das hashtags ativistas e sua voz coletiva. E é a partir dessa imageria organizada pelos metadados que artistas e designers traçam suas estratégias e compõem seus projetos visuais singulares (VESNA, 2007).

Arquivá-las e catalogá-las exige uma metodologia que vai além do olhar empírico do curador. No Calendário Dissidente, a estética do jogo narrativo das redes é constituída por infinitas combinações entre imagem-texto e texto-imagem. A interdependência entre o algoritmo e a imagem – ou melhor, a visualização de dados a partir de tagueamentos/palavras-chave – somadas ao contexto sociocultural no qual a imagem foi produzida e publicada. Ao compreender essa articulação, compreendemos elementos importantes do design dessas narrativas (PAUL, 2011).

 

Desemaranhar o tempo das redes

Um dos grandes diferenciais do Calendário Dissidente é sua função temporal. A cronologia dos fatos passa a reger a lógica de leitura. Enquanto a visualização das postagens no feed do Instagram segue a lógica algorítmica, que embaralha as sequências temporais das postagens em nome do acesso à “visibilidade” dos fatos/postagens dos seguidores com os quais o usuário mais interagiu na rede, ou das imagens mais curtidas pelo seu ciclo de amigos. Da maneira como o aplicativo disponibiliza seus dados algorítmicos para o usuário, não existe a possibilidade de uma busca de determinada imagem por data, ou por assunto. Discutiremos as funções cronológicas e as estratégias de poder embutidas no formato e gênero narrativo do calendário a partir de Le Goff (1990) em Calendário como gênero narrativo.

O arquivamento das “memórias compartilhadas” e o desconhecimento do que de fato é arquivado pelas empresas que detêm os dados nas nuvens é frágil. Nesse sentido, a estratégia de criação de novos parâmetros para arquivamento, edição e categorização da produção de imagens dissidentes – o objetivo desse projeto – nos parece relevante, na medida em que estamos preservando artefatos gráficos, memória afetiva e política.

Preservar as imagens-mensagens, classificá-las e arquivá-las a partir de estratégias maquínicas com o auxílio de inteligências artificiais corresponde a uma parte dessa investigação sobre novas metodologias de análise da produção estética das redes. Esse conjunto de imagens está organizado a partir de mecanismos que não dependem dos aplicativos nos quais foram veiculadas (no caso, o Instagram). Para além da formação de uma coleção de peças gráficas representativas da cultura visual e memória gráfica, este acervo se articula na discussão das linguagens visuais emergentes das redes, presentes em diferentes vieses ao longo da tese.

Outro aspecto a ser destacado sobre essa coleção de imagens dissidentes, organizadas e classificadas em um servidor da USP, diz respeito à independência das grandes nuvens. Os dados que armazenam também os dados que estão no repositório do Calendário Dissidente, os organizam e manipulam em uma outra lógica. Algumas nuvens, como Facebook, Instagram, Google, Amazon, têm acesso a todos os dados dos usuários que diariamente usam a internet e aplicativos para se comunicar com familiares, com o banco, com colegas de trabalho [Sidenote: Para ler mais sobre o domínio dos dados e das nuvens informacionais, as Cloud Polis, ler The stack: on software and sovereigntly, de Benjamim Bratton (2015).] .

Além das explorações arquivísticas e classificatórias realizadas com o suporte de robôs, o experimento realizado busca inferir sobre outras questões apontadas na pesquisa: o ato de colecionar não é feito apenas para preservar algo que não pode ser esquecido. Segundo Domenico Quaranta (2014), arquivamos por diversas razões: motivações pessoais, institucionais, históricas, econômicas e culturais. A coleção de parte da memória política brasileira disponibilizada pelo Calendário dissidente também pode ser usada para outros fins, além dos propostos nessa pesquisa.

No processo de coleta de dados das redes, observamos como a preservação e arquivamento de imagens digitais acontece. Reproduzidas infinitamente, reapropriadas e reconfiguradas em outras mensagens, caracterizam uma imageria de arte gráfica digital. Organizá-las e classificá-las a partir de alguns critérios estabelecidos significa lidar com “webcolecionismo” (QUARANTA, 2014), na medida em que estamos preservando artefatos gráficos, memória afetiva e política. Essa coleção de narrativas visuais da memória política brasileira, produzida de forma espontânea, não institucional – diretamente pelo autor e produtor (e pelos internautas) para as redes – pode ser usada para diversos fins. Um deles será explorado nas edições das imagens de cada categoria estética da pesquisa.

Talvez no futuro, seremos salvos pela cópia, como detaca Quaranta (2014), ao apontar como copiar pode ser uma forma de preservação. Graças às cópias de originais e de rascunhos das pinturas de Leonardo da Vinci, historiadores da arte puderam desvendar o período da renascença. O autor também discute a importância do colecionismo digital e da cópia para artistas que lidam com a net art. É como se estivéssemos sempre correndo um risco iminente de perder os arquivos, deles desaparecerem nos sistemas de busca da internet ou não puderem ser abertos e visualizados devido à obsolescência dos softwares ou hardwares em que foram criados (Ibid, p. 237-240). No caso das redes sociais, corremos o risco de os aplicativos modificarem suas estruturas e dificultarem cada vez mais o acesso aos nossos dados pessoais, que deveriam, a princípio, estar disponíveis em um clique.

 

Práticas arquivísticas, uma revisão necessária

A partir de outra perspectiva, mais historiográfica, Andreas Huyssen (2000) nos provoca a questionar o sentido e o porquê de estarmos tão seduzidos pela memória como uma preocupação cultural e política na contemporaneidade. O autor questiona os formatos e leituras que estamos dando aos objetos que, de certa forma, recodificam o passado, levantando uma preocupação de uma visão revisionista e eurocêntrica das práticas memorialistas, sobretudo as realizadas por museus e algumas práticas artísticas e arquivísticas (HUYSSEN, 2000, p. 14). Para o autor, o mundo está sendo “musealizado” por todos os indivíduos. “Há uma espetacularização da memória em múltiplas linguagens, e a saturação da mídia e a tecnologia a qual confiamos o vasto corpo de registros e dados nos ameaçam ao esquecimento, gera uma sobrecarga no nosso sistema de memória, gerando o medo de esquecimento” (Ibid, p. 24-33, grifo nosso).

No Brasil, assim como em outros países do mundo, as questões revisionistas e decolonialistas dos acervos estão sendo amplamente discutidas no momento. Não só por instituições museológicas como o International Council of Museums (ICOM), mas pela academia e por diversos grupos independentes. Este movimento repercute em trabalhos científicos e artísticos, como por exemplo, Memória da Amnésia, demonumenta, para citar dois projetos dos quais tivemos a oportunidade de participar, ambos coordenados pela Profa. Dra. Beiguelman. Essas iniciativas representam uma evolução do pensamento crítico e arguto de Huyssen sobre questões globais, sociais e políticas envolvendo a cultura da memória. São projetos multidisciplinares que reinventam modos de ver nosso passado, propondo alternativas de disseminar nossa memória e nossa história, trazendo novas estratégias de catalogação e arquivamento, usando IAs e outras ferramentas tecnológicas.

No setor museográfico, há uma movimentação no sentido de considerar os eventos e exposições temporárias parte da história e do acervo de uma coleção. Alguns documentos iconográficos, fotografias ou vídeos circulam apenas nas redes sociais e ainda não estão incorporados nos bancos de dados das instituições. A prática da documentação de eventos temporários acrescenta às atividades dos museus uma camada de ação e interação multívoca: ao fazer seu próprio arquivo, o museu legitima seu lugar como produtor cultural em sua comunidade local e na comunidade global, ao mesmo tempo constituindo-se como fonte de conhecimento de material de pesquisa. É uma tarefa difícil que inclui a necessidade de manter o passado vivo no futuro. Dentro do contexto atual, no qual museus de todo o mundo passaram a adotar novas estratégias de catalogação digital e criaram novos mecanismos de interação com seu público – como ações midiáticas através de redes sociais –, os critérios de catalogação precisam ser revistos e ampliados (PRATA et al., 2018, p. 667).

O livro Futuros Possíveis traz novas perspectivas sobre o assunto e enriquece essa discussão. Ana Magalhães, curadora do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC-USP), menciona a necessidade de se adotar novas práticas de catalogação, cujas abordagens sejam mais contextuais e historicizadas do que técnicas.

Valeria a pena repensar o processo de catalogação e documentação dos acervos artísticos (de qualquer época) à luz do desenvolvimento dessas práticas e da história de consolidação das agências e órgãos reguladores que emergiram na segunda metade do século XX, segundo a sua dimensão política. (MAGALHÃES, 2014, p. 40).

O problema apontado por Magalhães se aplica no campo das artes visuais, da fotografia e do design. Incluir contextos sociopolíticos e os conteúdos imagéticos publicados nas redes sociais acerca dos objetos materiais (obra de arte ou artefato gráfico) como parte de um acervo de memória gráfica é assumir que a participação do público nesses canais contribui para outros critérios catalográficos.

O Calendário Dissidente se inclui na linha de projetos que discutem práticas curatoriais de arquivamento de memória no âmbito da cultura. A partir de uma coleção de arquivos de imagens-mensagens produzidas não só por artistas e designers, mas também por internautas/cidadãos brasileiros, oferecemos um banco de dados de artefatos gráficos que representam a memória coletiva de um grupo, que denominamos aqui como dissidente, em determinado período da história do Brasil. Essas narrativas estão em diálogo com abordagens sociológicas e tecnológicas sem as quais seria impossível compreender a produção estética das redes. Nesse projeto, copiar, colecionar e arquivar as imagens dissidentes das redes significa organizar a recente produção da cultura visual digital brasileira a partir de critérios temáticos, estéticos e cronológicos. O site é o resultado parcial da investigação da tese, está disponível para o grande público e pode receber outras leituras, para além do design de comunicação. E talvez, no futuro, essas imagens passem a ter um outro significado.

Uma segunda abordagem desse conjunto de imagens que merece ser discutida diz respeito ao comportamento sociocultural do homem contemporâneo, engajado em participar da vida social e afetiva em ambientes híbridos, no tempo e espaço do território físico mesclado à esfera das redes informacionais. Em Armazenando o eu: sobre a produção social de dados, Vicente (2014) nos incita a pensar sobre algumas questões: até quando as grandes nuvens vão arquivar nossos dados, sistematicamente, e para quais finalidades? Como obter informações relevantes sobre o riquíssimo material para quem pretende pesquisar a emoção coletiva de uma comunidade diante de um acontecimento? Como obter grandes volumes de dados de comportamentos individuais para analisar um comportamento coletivo, seja ele relacionado a um gosto musical ou artístico, a uma tendência de uso de um determinado lugar ou a um deslocamento de uma população na cidade? A partir destas questões, destacamos o quanto este cenário multiplataforma se articula à uma concepção de organização do social: “todos esses casos apontam para uma estética da agregação de dados como metodologia para produzir uma nova cultura visual em consonância com a sociedade da big data” (Ibid, 2018, p. 297).

 

Memória gráfica brasileira

A memória gráfica é uma linha de estudos derivada da Cultura visual e se propõe a sistematizar, por meio de algumas metodologias, a produção de artefatos gráficos. A expressão “memória gráfica” busca compreender a importância e o valor de artefatos visuais, em particular, impressos efêmeros, na criação de um sentido de identidade local. Para os autores é possível assumir a memória gráfica como estratégia de abordagem para um estudo de coleção de artefatos gráficos, na esfera da cultura material e na memória coletiva de um povo (BRAGA; FARIAS, 2018, p. 20-23).

Nesse momento, nos parece que o tema memória gráfica é de especial importância para países como o Brasil e países da América Latina, regiões do mundo colonizadas por europeus e que passaram por um longo período sobre um regime político de ditadura militar entre os anos 60 e 80. A história do design brasileiro e de seus vizinhos foram praticamente excluídas das narrativas dominantes da história do design, com uma visão eurocêntrica, escrita por teóricos como Meggs e Purvis (2009) e Craig e Barton (1987).

O esforço de resgate da produção gráfica brasileira por pesquisadores como Chico Homem de Mello, Marcos Braga, Priscila Farias e Isabella Aragão, entre outros, é precioso, pois abordam diferentes aspectos da história do design gráfico, fazendo uma distinção dentre os vários tipos de artefatos gráficos, como tipografia, cartazes (publicitários ou ativistas), ilustração, impressos corporativos. A visão destes autores, focada nos modos de produção técnica, circulação e consumo das peças gráficas, está alinhada com as questões levantadas por Margolin (2014), para quem a história do design gráfico é bastante complexa para ser narrada linearmente, e merece uma revisão mais contextualizada e recortada. Ver Galeria Design de impacto.

 

Design set e funcionalidades do calendário

Como vimos, em um primeiro momento, o site se propôs a catalogar as imagens do Instagram a partir de 4 hashtags: #designativista, #desenhospelademocracia, #mariellepresente e #coleraalegria.

O design code (ou tech design) – trabalho realizado entre designers e desenvolvedores para a coleta de dados e construção de um produto com funcionalidades e experiências específicas – é parte fundamental do processo de criação do experimento gráfico que resultou no site Calendário Dissidente. Se deu em três etapas:

  1. Extração. Captura de imagens do Instagram via software Instaloader (Python 3.5) para baixar todas as imagens postadas no Instagram através do número escolhido;
  • Personalização do script para organizar e armazenar automaticamente as imagens por dia/mês/hashtag no diretório da máquina, no Inova Lab.
  1. Transformação. Desduplicação (cálculo do hash – um algoritmo que mapeia dados de comprimento variável – a partir dos pixels, considerando duas imagens iguais, nos casos em que a diferença entre o hash é menor que um limite).
  2. Carregamento e visualização. Criação de uma API [Sidenote: API: Application Programming Interface para a Web – Python 3.7, Framework Flask (https://flask.palletsprojects.com/en/1.1.x/).] .
  • Informações de metadados da imagem: autor, legenda, hashtags, dia, número de curtidas.
  • Seleção de imagens: o sistema carrega as 3 imagens mais curtidas de cada hashtag e rastreia os dados respectivos (do número do autor da API).
  • O front-end: design da página com calendário de busca e acesso às imagens; criação de um filtro de palavras-chave (usando uma abordagem temática) para que as imagens representem muitos ativismos.

Em resumo, as três etapas do experimento de pesquisa foram feitas com o suporte de softwares específicos no ambiente do Inova USP com o objetivo de coletar, processar e organizar as imagens. Com a descrição deste processo reforçamos as imagens do Instagram como objetos-mensagem constituídos de camadas processuais algorítmicas que estabelecem conexões produtoras de sentido, tanto em ambientes maquínicos quanto nas interações decorrentes na plataforma ou para além dela.

 

Pandemia e novas hashtags protagonistas

Durante o primeiro ano da pandemia de covid-19, outros grupos ativistas ganharam protagonismo nas redes. Alguns temas urgentes, ainda não contemplados diretamente nas quatro hashtags que estávamos trabalhando, se deslocaram para as políticas sanitárias, sobretudo em relação aos menos favorecidos e à população indígena. Para ampliar a discussão das narrativas nas redes, incluímos as #foragarimpoforacovid e #projetemos.

Várias etnias indígenas se organizaram em coletivos, motivados em pautar questões ambientais, sobretudo o garimpo descontrolado (e incentivado pelo governo federal), que leva milhares de brancos a trabalhar ilegalmente nas terras indígenas, trazendo o vírus para a comunidade, até então protegida de doenças que circulam em ambientes urbanos. Deste modo, escolhemos a #foragarimpoforacovid para representar este tema. Criada por um coletivo de artistas, intelectuais e líderes indígenas de algumas etnias como Yanomami e Kambiwá, este grupo propõe uma agenda ativista que trata de questões como a preservação da cultura indígena, a prática do genocídio, as tramitações de leis e medidas provisórias no Congresso brasileiro que ferem a constituição, a demarcação de terras indígenas, exploração do garimpo em áreas de preservação. Notamos nas imagens coletadas por meio desta hashtag um planejamento na criação dos posts/cartazetes de aberturas dos temas nessas imagens-mensagens. Há uma composição formal e estética, característica das produções gráficas no campo do design de comunicação, com claro viés editorial e documental. Essas narrativas, menos polifônicas e focadas no ativismo étnico, decolonialista e ambiental, dão luz a pautas urgentes e importantes da atualidade. Com repercussão global, #foragarimpoforacovid passou a publicar textos bilíngues e a pertencer a grandes grupos ativistas no mundo.

 

Captura de tela da página #foragarimpoforacovid no Calendário Disssidente. Podemos observar as narrativas visuais planejadas e com apuro estético.

 

A segunda hashtag incluída em junho de 2021 foi a #projetemos. Criada durante a pandemia pelo coletivo @projetemos, uma rede colaborativa de projecionistas no Brasil, esta hashtag representa uma nova linguagem visual ativista na medida em que devolve para as ruas as minimensagens projetadas em empenas de grandes cidades como São Paulo, Recife, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Belém. “A empena foi convertida na nova ágora dos tempos da coronavida. O confinamento deu vazão a outras formas de ativismo e as estéticas construídas através das janelas”, diz Beiguelman sobre as estéticas emergentes da pandemia(Beiguelman, 2021, p. 9-10).

 

Captura de tela da página #projetemos

A estética da projeção inverte a lógica das redes. Essas normalmente espelham as ruas. Nesse caso, as telas estão nas ruas. A cidade é usada como interface e funciona como mídia para divulgar os acontecimentos políticos. Isso implica em outra visualidade, na forma com que o receptor vê e recebe a mensagem, isolada, pausada e conectada a outras sequências de imagens que jamais estariam em seu feed. Nesse sentido, o coletivo Projetemos exerce uma curadoria de trabalhos relacionados a outros ativismos, ou pautas que merecem ser projetadas e extrovertidas para o âmbito das ruas. Fenômeno semelhante acontece com a #coleraalegria, na qual as imagens postadas correspondem a trabalhos de artistas do coletivo, relacionados a temas elegidos pelo coletivo para uma produção ativista referente a um assunto em evidência.

Por fim, a configuração final do Calendário ficou organizada em torno das narrativas visuais destas 6 hashtags: #designativista, #desenhospelademocracia, #mariellepresente, #coleraalegria, #foragarimpoforacovid e #projetemos. Com esta imageria arquivada e organizada, passamos para a etapa seguinte, a de análise visual das imagens, a partir de parâmetros estéticos e à luz do design.

 

Capturas de telas da visualização das quatro hashtags simultaneamente no calendário dos meses de janeiro de 2019.

Funcionalidades

Descreveremos nesta seção as funções do calendário e as possibilidades de navegação e experiência do usuário. A visualização da home page privilegia as principais imagens do dia, visualizadas pelas hashtags temáticas, pela data do acontecimento a qual elas se referem e foram publicadas, pelos nomes dos usuários – não necessariamente o autor da imagem. O site captura, indexa e publica diariamente as três imagens mais curtidas. O rastreamento é atualizado 4 vezes ao dia. A partir de uma varredura algorítmica das legendas das imagens, editamos as palavras mais usadas para criar uma outra camada de busca, um filtro por palavras-chave, sendo possível assim, verificar quais os assuntos foram mais ilustrados e elucidam os temas que pautaram a agenda sociopolítica e cultura brasileira desde 1º de janeiro.

 

Captura de tela da home page do Calendário Dissidente onde podemos visualizar as principais imagens do dia filtradas pelas hashtags temáticas.

 

  1. Filtros
    Na tabela abaixo, conseguimos rastrear quais as hashtags dissidentes mais usadas nas legendas das imagens de todas as hashtagsdo calendário: #mariellepresente, #designativista, #desenhospelademocracia, #coleraalegria, no período entre 1º de janeiro e 6 de novembro de 2019 (10 meses completos).As 1.000 hashtags e palavras-chave mais usadas nas legendas das imagens do Calendário e suas respectivas ocorrências, levantadas entre os períodos de 1 de janeiro de 2019 a 6 de novembro de 2019:
#mariellepresente 42.004 #tv247 2.160
#lulalivre 24.446 #manifestoches 2.158
#vazajato 12.751 #brizolavive 2.155
#designativista 11.431 educação 2.103
#forabolsonaro 11.344 #racismo 2.098
#elenao 10.598 #fascismo 2.074
#brasil 9.436 justiça 1.998
#resistencia 9.054 #arte 1.998
#quemmandoumatarmarielle 8.429 arte 1.944
#esquerda 8.134 direitos 1.935
#mariellefranco 8.037 #direitoshumanos 1.846
#elenunca 6.718 #marighella 1.841
#impeachmentbolsonaro 6.693 #educaçãoinclusiva 1.822
#moromentiu 6.600 #impeachmentdebolsonaro 1.811
#conversaafiada 6.502 governo 1.810
#eusoulula 6.498 #bolsonaroenvergonhaobrasil 1.772
#caixa2dobolsonaro 6.298 #pdt 1.748
#manueladavila 6.068 #bolsonaroburro 1.744
#elenão 6.062 #lgbt 1.732
#haddad 6.038 #marielevive 1.683
#ditaduranuncamais 5.108 #antifa 1.662
#democracia 4.597 #brazil 1.649
#lula 4.584 #pcdb 1.648
#ninguemsoltaamãodeninguem 4.551 anderson 1.634
#psol 4.458 #marielepresente 1.631
#elejamais 4.395 lula 1.631
#riodejaneiro 4.171 #marielle 1.627
#luta 4.117 #illustration 1.597
#desenhospelademocracia 4.108 #partidosolaranja 1.563
#midianinja 4.106 #moronacadeia 1.555
#esquerdavalente 4.097 #bolsonaro2018 1.546
#euavisei 4.034 #desgoverno 1.520
#feminismo 4.021 negra 1.495
#pt 3.952 #quemmatoumarielle 1.487
#partidodostrabalhadores 3.830 #lulalivrejá 1.486
#brasilia 3.816 #drawing 1.480
#tsunamidaeducação 3.766 povo 1.477
#lulapresopolitico 3.764 #juntossomosmaisfortes 1.467
#haddad13 3.582 história 1.455
#mulherescontrabolsonaro 3.550 #morocriminoso 1.430
#grevegeral 3.541 política 1.390
#morofascista 3.533 foto 1.388
#curitiba 3.457 amor 1.380
#bolsonaro 3.454 negras 1.347
#resistência 3.345 entre 1.346
#regrann 3.338 morte 1.326
#politica 3.338 #15m 1.307
#saopaulo 3.335 #liberdade 1.300
#salvador 3.335 #desenho 1.246
#cirogomes 3.332 resistência 1.236
#theintercept 3.310 crime 1.225
#jornalistaslivres 3.299 #antifascism 1.200
#fernandohaddad: 3.275 moro 1.189
#mulheresunidaspelademocracia 3.230 #mexeucomumamexeucomtodas 1.177
#cartacapital 3.222 #eleicoes2018 1.151
#facistas 3.215 sociedade 1.143
#brasil247 3.206 #lulavalealuta 1.143
#recife 3.151 humanos 1.125
#lulanobeldapaz 3.074 #resistêcia 1.124
#presopolitico 3.056 nossas 1.107
#cadeoqueiroz 3.056 #inclusão 1.102
#eleições2018 3.055 #eibolsonarovaitomarnocu 1.100
#belohorizonte 3.055 poder 1.096
#dcm 3.049 #educaçãoespecial 1.095
#portoalegre 3.037 #educarfilhos 1.095
#golpista 3.005 #alunosespeciais 1.095
#fortaleza 3.004 #deficientes 1.095
#manaus 2.981 #deficientesfisicos 1.095
#ficaadica 2.978 assassinato 1.094
#educação 2.973 #pcdob 1.094
#globogolpista 2.971 estado 1.091
#floripa 2.968 sou 1.089
#brazilresists 2.965 #elesim 1.089
#belem 2.951 #lgbtq 1.080
#foratemer 2.895 tão 1.079
#redeglobo 2.844 disse 1.079
#dilma 2.843 #rabiscos 1.078
#mulheresnapolitica 2.620 corpo 1.077
#vidasnegrasimportam 2.557 @midianinja 1.073
#designativista 2.527 #30m 1.071
#cultura 2.272 #homofobia 1.046
#infuxwetrust 2.265 #movimentonegro 1.038
#morogate 2.263 indígenas 1.035
#fascista 2.251 vereadora 1.034
#bolsonarovaitomarnocu 2.211 #diversidade 1.023
#carluxo 2.164 #machismo 1.018
#art 2.164 #bolsonaronao 1.016
#bolsonarolaranja 2.161 #lgbtfobia 1.001

 

A escolha dos filtros temáticos aplicados às imagens do calendário do dia foi feita a partir da varredura das 1.000 palavras-chaves e hashtags extraídas das legendas. Para ampliar o espectro temático dos ativismos representados por essas imagens, tivemos a preocupação de incluir outros temas presentes nos ativismos representados pelas imagens, como aquecimento global, fumaça, Amazônia, mineração, petróleo, homofobia, resistência, racismo.

 

Lista completa dos 55 filtros do site, em ordem alfabética:

amazonia justiça
aquecimento global lgbt
arte lgbtq
Bolsonaro liberdade
Brasil lula
Brazilresists lulalivre
Brumadinho machismo
caixa2dobolsonaro mariellevive
cirogomes meio ambiente
crime ambiental mexeucomumamexeucomtodas
cultura mineração
democracia moradia
desastre ambiental moro
dilma movimentonegro
direitoshumanos mulherescontrabolsonaro
ditaduranuncamais mulheresnapolitica
diversidade mulheresunidaspelademocracia
doria negra
educação ninguemsoltaamãodeninguem
educaçãoinclusiva óleo
eleicoes2018 petróleo
elenunca praia contaminada
esquerda previdência
fascistas queimadas
feminismo quemmatoumarielle
foratemer racismo
fumaça redeglobo
golpista reforma trabalhista
grevegeral resistência
haddad sociedade
história tsunamidaeducação
homofobia vazajato
impeachmentbolsonaro vidasnegrasimportam
indígenas

 

 

2.Imagens em destaque

Todas as imagens publicadas estão creditadas a partir do nome do usuário que as publicou no Instagram (sendo possível acessar a página do autor). Como várias imagens são viralizadas e repetidas, adotou-se o critério de creditar a primeira publicação referente àquela imagem.

Imagem em destaque de autoria de @crisvector. Legenda: “Vanessa Nakate @vanessanakate1. A jovem ativista pela causa climática, de 23 anos, natural de Uganda, foi cortada em uma foto em que posava com outras jovens ativistas, incluindo Greta Thunberg. Ela era a única negra. HESHIMA “Heshima” é uma palavra da língua Suaíli que quer dizer “respeito” e também “dignidade”. O suaíli é uma das línguas oficiais de Uganda. #respect #respeito #racismo #racism #vanessanakate #uganda #heshima
#climatechange #designativista #ilustração #illustration #vector”.

 

Captura de tela da área de busca por filtros temáticos do site. Neste caso, o resultado da busca pelas palavras “negra” e “racismo”, do dia 27 de janeiro de 2020.

 

2.1. Link para a página do autor no Instagram:

Captura de tela da página de @crisvector.

 

Ler por imagens

Ao navegar pelos meses dos calendários, podemos assimilar alguns aspectos da política e dos acontecimentos no Brasil através da visualidade (MENESES, 2003). Ao se deparar com a leitura de imagens, percebemos o papel fundamental desta na compreensão da mensagem da peça gráfica por meio de um mosaico de linguagens visuais – ilustrações manuais, imagens documentais apropriadas da grande mídia, ilustrações vetoriais digitais e colagens com linguagens remixadas.

As imagens produzidas e compartilhadas por muitos formam uma narrativa heterogênea, em termos de linguagem visual, mas uníssona em termos de mensagem. Um jogo de linguagem, participação coletiva, adição, apropriação, trocas afetivas, posições políticas, ativismos relacionados a diversos temas. Há uma contaminação de um sentido comum, de algo que nos afeta, gerando um senso de que é preciso participar dessa corrente, produzindo elementos gráficos, participando desse jogo de linguagem de ler por imagens. Didi-Huberman nos ajuda a entender este fenômeno cuja experiência da visualidade é aprofundada em Cultura Visual e imagem digital.

A estética de banco de dados emerge da superprodução de informações disponíveis no fluxo das redes. O Calendário Dissidente, como projeto experimental, aponta o potencial estético da visualização das narrativas visuais pelas inteligências artificiais. Os softwares criados para os rastreamentos das palavras-chaves possibilitam a visualização de peças gráficas únicas acerca de determinado tema, ampliando as informações e os pontos de vista sobre um mesmo evento. Na medida em que ampliamos a análise dos exemplos visuais com o uso de inteligências artificiais, entramos em contato com outras características dessas peças gráficas, objetos materiais.

A possibilidade de conhecer os portfólios de ilustradores e artistas de todo o Brasil e ter a oportunidade de observar as tendências e os estilos das ilustrações digitais de cada um também é um bom resultado para a pesquisa que emergiu da navegação do Calendário.

 

Política de dados: o calendário interrompido

Um dos objetivos do calendário era cobrir os quatro anos do governo Bolsonaro e organizar cronologicamente a narrativa visual e a memória gráfica da sua política desastrosa, notadamente marcada por retrocessos em todos os campos, reconhecido como os piores anos da história do país. O posicionamento político dessa gestão desencadeou diversos levantes ativistas: meio ambiente, racismo, questões de gênero, protagonismo feminino, questões de etnias pretas e indigenistas, para citar alguns temas, culminando com a crise sanitária, econômica e social provocada pela pandemia da covid-19 e pela política anti-vacina do presidente. Ou seja, desde o início da pesquisa e a escolha das hashtags mais significativas, alguns eixos temáticos ganharam mais força e outros grupos dissidentes começaram a aparecer com mais protagonismo nas redes.

A crise sanitária e a disseminação de notícias falsas sobre a covid-19 geraram um segundo Calendário Dissidente, o Pantone Político, organizado em torno de notícias provenientes de fontes fidedignas do Twitter. Este experimento gráfico, apropria-se da Escala Pantone e traça um diálogo entre os dois experimentos estéticos na medida em que ambos se utilizam dos dados de redes sociais com o intuito de informar, arquivar, editar e disponibilizar para o grande público, os principais acontecimentos políticos do país durante esse período. As estratégias de design do Pantone Político extrapolam o design de comunicação e a ciência de dados e tem um impacto social e de serviço para a população menos favorecida. Ler no tópico Pantone Político: estéticas pandêmicas.

Em termos dissidentes, os dois trabalhos driblam a política de dados dos aplicativos para oferecer de forma criativa um produto/serviço de design. Uma espécie de “hackeamento” do bem, pois todos os procedimentos de extração de dados foram feitos com scripts e softwares open source, disponibilizados na plataforma Python. Não violamos nenhuma política de privacidade e de dados de ambas as empresas. No caso do Twitter, a autora conseguiu uma licença de pesquisadora e ganhou um API acadêmico para rastrear e dar download das notícias.

Já o Instagram, aplicativo da empresa norte-americana Meta (controladora também do WhatsApp e Facebook), adota regras mais severas e restringe o uso da sua API ao acesso a um número limitado de imagens. Com o aumento de casos de fake news durante a campanha de reeleição de Donald Trump em 2020, a empresa alterou drasticamente as políticas de dados, restringindo a visualização dos dados algorítmicos das imagens que circulam nas redes, impossibilitando o download de imagens por softwares autorizados para tal função. Esta medida tinha como objetivo dificultar a indústria de bots, geradora de notícias falsas, e impactou a operação de dados do Calendário Dissidente. Não conseguimos rastrear e extrair as principais imagens do dia desde 16 de novembro de 2020. Ou seja, a memória gráfica do calendário cobre a imageria produzida até esta data.

Depois de ter redesenhado os códigos do Calendário duas vezes, por conta de alterações das APIs do Instagram, não havia recursos e equipe disponível para iniciarmos mais um processo de codificação. A interrupção da extração de dados para o calendário se deu em meio à crise política da eleição norte americana, no auge da crise da pandemia de covid-19 no mundo e no ápice das manipulações de dados por robôs treinados para extrair dados verdadeiros e transformá-los em notícias falsas. Perdemos a oportunidade de completar a narrativa visual dos quatro anos da gestão de Bolsonaro. Porém, os dados coletados para a pesquisa foram mais do que suficientes para as investigações propostas e representam um rico acervo da memória gráfica e política brasileira.

Este episódio nos leva a outra discussão sobre a fragilidade de acesso aos trabalhos de net art, sujeitos às restrições políticas e tecnológicas. Também fortaleceram a ideia de que um calendário interrompido e paralisado representa o emaranhado do tempo pandêmico. São “imagens quebradas”, como diz Beiguelman, impossibilitadas de sobreviver a um futuro baseado no “capitalismo informacional” [Sidenote: Conceito cunhado por Manuel Castells em A sociedade em rede, 1999.] , no qual a velocidade com que produzimos e consumimos informações fazem com que se tornem imagens desatualizadas, quebradas ou obsoletas em um curto espaço de tempo (BEIGUELMAN, 2014, p. 46).

Podemos dizer que essas plataformas seguem o regime “capitalismo fofinho”, outro termo cunhado por Beiguelman, para criticar a iconografia da web 2.0. Esse se expressa não só por meio do design amigável dos aplicativos, seus ícones, devices e design coloridos, pela opacidade de um design de informação cujo objetivo parece ser suprimir a possibilidade de conflito (Ibid, p. 48).

Seguindo essa lógica, as redes sociais como Facebook e Instagram são lugares onde os dados informacionais são protegidos. Quer dizer, controlados e monitorados, pois as plataformas definem quando e o que querem veicular e para quem. Não há negociação entre as partes (usuários e app). A página do Instagram, um álbum de imagens colorido e lúdico, é a fachada do grande negócio que sustenta a gratuidade do aplicativo: a coleta de dados para anunciantes. A restrição ao acesso das APIs das imagens, a rigor, visa proteger o usuário em nome da preservação de sua privacidade de dados.

Porém, essa mesma ferramenta alimenta o rastreamento algorítmico para fins comerciais, beneficiando a plataforma. Coincidências à parte, a restrição de uso das APIs do Instagram ocorre no mesmo momento em que a indústria de tecnologia de softwares e aplicativos e os serviços de plataforma de todos os tipos lucram com upgrades e downloads diários, além da venda de anúncios. É uma operação dupla: o lado A oferece uma boa experiência do usuário no sentido afetivo, sensorial e cognitivo, enquanto o lado B escamoteia sua política dos dados e o está sendo rastreado, arquivado e comercializado pelas corporações, a partir dos rastros dessa experiência na rede (ZUBOFF, 2019; BRUNO, 2013).

Este experimento gráfico é um projeto cuja estratégia de funcionamento dependeu de uma infiltração dentro de uma rede fechada. Seu DNA é gambiológico pois dribla – por meio de uso de softwares livres e sem quebrar as regras – encontrando as brechas de todo um sistema algorítmico. Há uma tensão entre a estratégia de design, os objetivos do site, com fins culturais, sociopolíticos e acadêmicos e a vocação capitalista informacional da rede. Seguindo o raciocínio de Beiguelman, podemos dizer que a dissidência do calendário é também tecnológica, ou melhor, tecnofágica – um dispositivo gambiológico de desobediência tecnológica. Este tipo de projeto de artemídia é uma combinação entre tradição e inovação: “os arranjos inusitados entre saberes imemoriais e de última geração e a revalidação das noções de high tech e low tech” (BEIGUELMAN, 2014, p. 46-50).

A obsolescência programada dos trabalhos de design e artemídia que utilizam uma infraestrutura tecnológica e dependem de uma mídia para serem expostos e visualizados é um dado concreto. A grande maioria dos trabalhos de videoarte da década de 60, por exemplo, foram originalmente gravados em fitas Betamax, antecessoras da fita VHS, do DVD e hoje, do arquivo digital, hospedado em uma nuvem. As mídias estão sujeitas a transformações ou interrupções das empresas que as fabricam e essa constante acaba por traçar uma arqueologia da obsolescência dos trabalhos audiovisuais e de net art no século 21. Como vimos com Vicente (2014), estamos alimentando uma cultura visual e criando novas poéticas a partir de dados agregados da sociedade (e do negócio) da big data. São práticas e operações sujeitas a descontinuidades, seja por questões de obsolescência das mídias, seja por políticas algorítmicas, como foi o caso do Calendário Dissidente.