Nesta galeria, procuramos reunir algumas referências visuais do campo do design gráfico dissidente. Sem a pretensão de compor uma arqueologia visual e linear, mas com o intuito de ampliar o repertório para o entendimento das imagens-mensagens pelas estratégias do design, fizemos uma edição das pesquisas de Mcquiston (1995; 2015), Chico Homem de Mello (2011; 2012) e Milton Glaser (2017). Além da nossa coleção e curadoria de cartazes que consideramos emblemáticos para ilustrar a importância do cartaz dissidente como peça-gráfica, dispositivo e, simultaneamente, veículo de comunicação.
Em um formato despretensioso, esta galeria de cartazes dissidentes busca criar uma ponte entre a influência da tradição da produção de cartazes ativistas impressos desde os anos 60, e a produção atual dos cartazetes das redes, as imagens-mensagens.
Partimos do pressuposto que estamos diante de uma evolução formal do tradicional cartaz ativista, em decorrência da evolução e surgimento de outros meios tecnológicos de produção, mediação e veiculação de narrativas visuais. A pesquisadora e designer estadunidense Liz Mcquiston (2015) nos ajuda a elucidar essa questão. As imagens ativistas ao longo da história constituem uma vasta produção gráfica de cartazes impressos e representam diferentes causas, em contextos globais e locais ao longo do século XX.
Com o advento da internet 2.0, notamos um boom na produção, mediação e circulação de imagens dissidentes, imagens essas que definitivamente nos marcaram com seu “impacto visual”, título do livro de Mcquiston (2015) sobre a criatividade dissidente no século XXI. A autora faz uma edição temática dos cartazes digitais e das imagens produzidas por artistas e designers em resposta a protestos e dissidências políticas e sociais. A imagem do ataque terrorista às torres gêmeas em Nova York, em 11 de setembro, é considerada a grande ruptura do novo século, a nova imagem contemporânea, que circulou em questão de minutos nas mídias de todo o mundo. Esta imagem, de dois aviões sequestrados pelo Al-Qaida, grupo terrorista islâmico, se chocando com o símbolo do capitalismo tem forte impacto visual e deflagrou uma nova forma de protestos visuais, via imagens digitais pelas mídias televisivas, impressas, sites on-line e e-mails – ferramentas dos anos 90.
A marca do ativismo nos anos 2000 acontece no final da primeira década do século XXI, com as tecnologias emergentes e uso de dispositivos móveis e o compartilhamento das imagens pelas redes sociais, via smartphone. A tecnologia alterou completamente a forma e a linguagem dos protestos e resultou em revoluções como a Primavera árabe (2011), o movimento Occupy Wall Street nos Estados Unidos e na Europa (2011) e o movimento “Passe livre” no Brasil (2013) (Ibid, 2020).
Comparando a produção do design de comunicação da era pré-redes com as novas possibilidades de penetração e velocidade oferecidas pelas mídias atuais, a autora aponta que a questão central é respondermos à pergunta “Is the poster dead?” (O cartaz está morto?), a qual ela prontamente responde:
“O uso do cartaz nunca esteve tão vivo, em vários tamanhos, rabiscados e feitos à mão, ou impresso, eletrônico e impulsionado pela tecnologia móvel dos aplicativos para celulares, e ainda performando seu papel mais importante, o imediatismo das expressões políticas. Os bancos de imagens on-line também emergiram, arquivando e disponibilizando cartazes gerados pela mobilização de protestos sobre desastres naturais e outras crises. Vê-los é como se escutássemos os gritos das manifestações ou como se estivéssemos imersos em uma conversa urgente. O espectador sente a raiva do outro… Mesmo sem conseguir ler o idioma da mensagem escrita” (Ibid, p. 10, tradução nossa).
No Brasil, podemos apontar duas grandes manifestações nacionais nas ruas na última década que repercutiram na produção gráfica ativista. A maior delas, “Passe livre”, ocorreu em junho de 2013 e teve adesão maciça em mais de 500 cidades. Contra o aumento de tarifas de ônibus, reivindicava o transporte coletivo gratuito (quando o pano de fundo era o impeachment – o golpe – que estava em curso para tirar a presidente Dilma). A segunda grande manifestação de repercussão nacional foi a #elenão, contra o voto em Bolsonaro, em 28 de setembro de 2018 no Brasil. Ambas foram pluripartidárias e se destacaram pelo engajamento e participação de coletivos, cidadãos e estudantes. Nesses dois eventos comprovamos um paralelismo quase em tempo real do que acontece nas ruas e nas redes. As estratégias ativistas, os movimentos coletivos e o modus operandi das coberturas de mídia – cada vez menos institucionalizadas – repercutiram nas estéticas das imagens-mensagens produzidas pela pessoa comum/internauta/produtor de linguagem e de fatos noticiosos. Ivana Bentes aborda como essa mídialivrista, produzida por cidadãos dentro do acontecimento, com uma câmera na mão representa novas linguagens e paradigmas comunicacionais (BENTES, 2019). Ver Cultura visual e imagem digital e imagem metonímica, por Grusin (2020).
O movimento das ruas de 2013 tem semelhanças aos acontecimentos nas ruas de outros lugares no mundo, e o crescimento e engajamento dos usuários das redes na criação das imagens mensagens só cresceu desde então. Nossa coleta de dados começou em 2017, como já visto com #lulalivre. Foi somente com a implantação do design code do projeto que conseguimos aferir os números do #elenão.
Produção gráfica de cartazes ativistas
A “gráfica da ação”, como define Homem de Mello (2012), é caracterizada por algumas correntes estéticas relacionadas a acontecimentos políticos que marcaram a linguagem visual da produção gráfica ativista. Em uma breve retrospectiva, Mello destaca algumas vanguardas estéticas que influenciaram a produção gráfica do design brasileiro nos anos 60 (e ainda são usadas como citações explícitas nos dias de hoje): os cartazes soviéticos; as manifestações de maio de 1968 (no Brasil e no mundo); os cartazes poloneses relacionados à dissidência dos países do leste europeu; a produção americana dos anos 60 e 70, liderada pelos movimentos negros, feministas e estudantis; e a produção gráfica de Cuba (tendo Che Guevara como o ícone-mártir da revolução). Todos esses movimentos, sem exceção, foram pioneiros em usar técnicas de impressão rápidas e de baixo custo para a reprodução de peças gráficas de grande circulação (MELLO, 2012 p. 244-251). A necessidade de rapidez na produção e circulação podem ser comparadas às ferramentas de design, prontas para usar, nos aplicativos dos celulares. A alta reprodução, velocidade e veiculação das imagens-mensagens, idem.
As ferramentas tecnológicas à época eram manuais e os trabalhos gráficos, produzidos com o uso do stencil, da xilogravura e cordel, da serigrafia, colagens de fotografias e letras manuscritas. O resultado formal dessas peças está intrinsecamente ligado às condições de produção, mediação e veiculação dessas. A prática ativista de produção de cartazes se mantém ativa e se modifica de acordo com as mudanças culturais, sociais e tecnológicas. Com o uso de novas estratégias modernas – na produção, mediação e veiculação da vasta produção gráfica – esses cartazes ganharam novos potenciais estéticos, além de um alcance de circulação sem precedentes.
Também observamos o uso de técnicas manuais de baixo custo para as manifestações das ruas e das redes no Brasil nos dias de hoje. Os cartazes estudantis, produzidos com canetas, pincel e com a técnica de stencil sobre cartolinas e faixas, presentes nas manifestações estudantis como a #15m, de maio de 2019, são bons exemplos desse mix de velocidade e ação. Os trabalhos produzidos e veiculados na #coleraalegria, hashtag criada por um coletivo de artistas, também utilizam a técnica da pintura com tinta acrílica ou gouache sobre o papel e empregam elementos figurativos e vernaculares, ilustrando essa gestualidade espontânea, feita para as ruas e reproduzidas nas redes.
A manifestação por meio desses cartazetes (as imagens-mensagens) ou melhor – a comunicação visual dissidente das redes – também remete à produção dos cartazes ativistas do período pós-guerra (GLASER, 2017). Os aspectos formais dos cartazes, cores, composição, tipografia e a repetição serializada, copiada, imitada, apropriada, também são relevantes para examinarmos a cultura visual das redes como uma arte regenerativa (NAVAS, 2016), inerente aos meios as quais ela é produzida, reproduzida e circulada. Consideramos que os posts das redes sociais são análogos aos “cartazes” impressos ou feitos à mão. Embora os “posts” digitais não circulam nas ruas e sim no fluxo das redes e podem ser repostados e veiculados infinitamente.
A imageria das redes é composta pelo repertório cultural do usuário. Seus ideais e suas lutas são representados por meio de imagens nas quais os índices visuais, ícones, figuras de personalidade, mensagem verbal, ou ilustração figurativa, proporcionam uma identificação não só ideológica, mas estética. São jogos de linguagem.
A questão do gosto e as subjetividades que envolvem o processo de criação dessas peças, mas sobretudo o processo de recepção, vão ser medidas pelo engajamento de uma imagem-mensagem para determinado público, em determinado contexto sociopolítico e temporal. O mesmo ocorre com os cartazes desta galeria.
Como vimos nas imagens classificadas na categoria Apropriação, a edição dos posts cujas imagens principais são apropriadas de ícones da cultura pop, obras de Warhol, Kubrick, para citar alguns artistas, foi feita a partir do olhar do editor. Porém há infinitas apropriações de outros símbolos cujos códigos e léxico de linguagem não puderam ser absorvidos por mim, mulher branca, classe média, 50+, curso superior completo. Porém são absorvidos por outros públicos, e representam a democracia e a potência da comunicação por meio da heterogeneidade da imageria das redes.
O recorte das análises realizadas nesta galeria Pesquisa tem um olhar de alguém que atua no campo das artes visuais, do design e da comunicação. E pretende, com essa breve referência da história do design, contribuir para este campo, apontando novas vertentes relacionadas à evolução do design de comunicação, discutidas ao longo da tese.