As narrativas visuais no Instagram representam uma nova linguagem visual da cultura digital contemporânea. São imagens relacionadas ao cotidiano e aos afetos. Representam a estetização do self e de um ideário de vida. Participar de uma comunidade de “amigos” na rede gera engajamento relacionado aos acontecimentos mundanos que nos comovem e nos afetam diariamente. O envolvimento com a produção, mediação e distribuição de imagens como uma atividade cotidiana pode representar sobre o que somos, sobre o que acreditamos e lutamos (virtualmente).
A representação estética do usuário do aplicativo na rede e as potencialidades de criação de linguagem foi o tema da dissertação de mestrado “Imageria e poéticas de representação da paisagem urbana nas redes”, defendida em 2016, sob orientação de Giselle Beiguelman no departamento de Projeto, Espaço e Cultura na FAU-USP. Naquela pesquisa, o objetivo era justamente explorar as potencialidades do uso das imagens do Instagram para a produção de narrativas visuais e mapeamentos psicogeográficos da cidade. O recorte dessas imagens poderia ser inserido na categoria “arquitetura, ambiente e paisagem”. Durante a análise utilizou-se a metodologia de visualização de dados vinculados a lugares, geolocalização e público da rede, como fotógrafos, artistas anônimos e cidadãos em geral. A observação de diversos perfis e a edição de imagens das hashtags #ciclovianapaulista, #parqueminhocao, #copan, entre outras, foram os pontos centrais para a curadoria e criação das narrativas visuais da paisagem urbana nas redes.
O resultado prático da dissertação alavancou a continuidade da pesquisa no campo da cultura visual das redes a partir do viés do design de comunicação. A tese dá continuidade à análise das imagens no Instagram, ampliando os campos multidisciplinares que consideram outros quesitos analíticos da imagem informacional: o contexto sociocultural, a experiência e a participação do usuário, a memória e o fato que a imagem representa e a produção de novas estéticas. Essas análises serão discutidas ao longo dos tópicos seguintes a partir do experimento gráfico Calendário Dissidente.
A fim de melhor compreender a domesticidade da produção de linguagem do Instagram e, sobretudo, estabelecer uma coleta de dados representativa da evolução do design gráfico na contemporaneidade, realizamos um pré mapeamento de todos os tipos de postagens. Esse levantamento empírico, resultou em uma classificação de cinco “grandes categorias”. A categoria “arquitetura e paisagem” pode ser considerada uma subcategoria, pois está vinculada à experiência de deriva do usuário (pessoa física) ou do reforço institucional e ou comercial das narrativas institucionalizadas. Arquitetura e natureza são itens de “consumo”, de “estilo de vida” e de reforço de branding. Abaixo detalhamos tais categorias:
1) Imagens identitárias
A primeira categorização de imagens pode ser lida na chave do lúdico e do narcísico. São imagens que trazem questões identitárias – ou o que gostaríamos de projetar como imagem do nosso self. São retratos de família e amigos, selfies (e looks), viagens, pratos de restaurantes, gatos, cachorros de estimação, capas de álbuns de música do Spotfy, imagens da paisagem urbana, da apreensão estética cotidiana. São imagens-mensagens que tecem um jogo de memória e de afeto entre os envolvidos. Boylan (2020) denomina essas imagens como uma “visão pessoal”, na qual os usuários das redes buscam criar intimidade, identidade, senso de comunidade entre seus pares.
2) Imagens ativistas
A segunda categoria diz respeito sobre o que acreditamos e lutamos no campo sociopolítico. São imagens-mensagens inseridas no contexto atual em que vivemos, que estão vinculadas aos acontecimentos diários no Brasil e no mundo. São fatos que nos afetam diretamente ou indiretamente, mas nos chamam à participação ativa, nas redes (para muitos) e nas ruas (para poucos). Podem ser interpretadas na chave do ativismo dissidente e envolvem questões relacionadas à cidadania e à polis, além do nosso engajamento diário com o mundo contemporâneo no qual vivemos. Como vimos, esta categoria ativista será o recorte da coleta de dados (imagens) da tese, pois concentra a grande produção e imagens-mensagens, identificadas nessa pesquisa como os cartazes digitais, conforme pode ser visto no Calendário Dissidente. Elas representam levantes poéticos e manifestações estéticas em diversas linguagens visuais no campo do design gráfico (desenhos, ilustrações manuais, fotos, colagens, imagens vetoriais, posts tipográficos). Ver #ativismo:ruas e redes.
3) Imagens portfólio e galerias pessoais
A terceira categoria, está relacionada ao uso do aplicativo como galeria e portfólio de artistas, ou aspirantes. Há várias narrativas autorais de trabalhos extremamente poéticos que apresentam essa outra vocação dessa rede social. O número de artistas gráficos, artistas visuais, músicos, bailarinos e atores que utilizam o Instagram para expor seu trabalho profissional aumentou exponencialmente após a pandemia. Impedidos de apresentar suas produções de modo presencial, as estratégias artísticas de captação, reprodução e publicação de trabalhos nas redes representam um conjunto significativo de imagens estáticas e fílmicas. Dentro dessa categoria, podemos incluir as narrativas focadas na divulgação de exposições, processos criativos, cursos nos quais esses artistas estão participando. O Instagram é o lugar de apresentação do trabalho e de divulgação de narrativas que reforçam o conteúdo e o processo artístico. Podemos incluir nessa categoria as imagens que divulgam o repertório, o contexto e o processo criativo, ampliando a intimidade do espectador com determinado artista.
4) Imagens portfolio e galerias institucionais
A estratégia visual desta categoria guarda semelhanças com os portfólios pessoais, sobretudo as instituições museológicas, os centros culturais e algumas empresas de diversos segmentos. O setor cultural teve seus espaços físicos fechados por meses por conta da pandemia e tiveram que rever sua abordagem comunicacional e museográfica com o seu público, explorando o Instagram como lugar expositivo. Essas narrativas, porém, carregam um viés mais politizado e polido, seguem o propósito de determinada instituição e guidelines do branding – guias de uso de aplicação de identidade visual e indicações de linguagem para uso de imagem e textual – de determinada instituição. De certa maneira, oferecem uma cultura visual filtrada pela curadoria e pela sua visão de mundo.
Com mais recursos, algumas instituições investiram em tecnologias informacionais, proporcionando visitas aos seus espaços expositivos físicos, via vídeos interativos em 360º, com uso de realidade virtual e outras atividades interativas, ativando o espaço do museu no aplicativo, ampliando assim a conversa com o público. Nesse contexto, emergiram novos modos de expor e a oportunidade de usar a rede como espaço de engajamento cultural.
As empresas e o mundo corporativo também tiveram que criar estratégias para as redes. Algumas postagens seguem os guidelines da marca, mas muitas delas poderiam ser classificadas entre as galerias pessoais e as imagens comerciais, pois não abraçam uma pauta com conteúdo e propósito mais aprofundados que exigiria um design e uma narrativa mais planejada, para além das lives e posts com retratos coloridos das pessoas que “fazem acontecer” na empresa ou no setor. Há muito o que ser explorado e aprimorado em termos de design de comunicação, mas não entraremos nesse assunto.
5) Imagens comerciais
Esta categoria se utiliza das quatro anteriores para criar storytellings específicos, as direcionados especialmente para o perfil daquele usuário no aplicativo. Afinal, ela teve acesso aos dados de tudo o que você gosta, dos lugares que frequenta, do que você faz e consome na sua hora de lazer. Ou seja, essas imagens invadem o seu feed para colaborar com a “branditização” da sua vida, sugerindo marcas de roupas, sapatos, carros, hotéis, passagens aéreas, cursos etc. A comunicação por meio de imagens sobrepõe outras linguagens, acrescenta outras camadas narrativas à literatura, às artes, à memória e ao comportamento sociocultural do homem contemporâneo, moldado pelo uso de um dispositivo móvel, um smartphone. Criamos e trocamos imagens velozes, feitas para viajar em tempo real, imagens “ruins” ou pobres, como vimos com Steyerl (2009). Imagens ricas e desprendidas de hierarquias, instituições, códigos pré-estabelecidos. Estamos operando nossa comunicação cotidiana por meio de outros códigos, reconhecidos entre nossos pares.
Há uma mudança permanente e contínua dos significados das imagens que viajam nas redes sociais. Uma imagem documental – veiculada nas plataformas Instagram ou Facebook – que pode ganhar novos significados quando mediada, apropriada e publicada em outro contexto narrativo. O jogo de adição, subtração e edição manipulado pelas ferramentas tecnológicas caracteriza a linguagem gráfica dessa imageria. Esses agenciamentos envolvem coautoria, colaboração, curadoria e, muitas vezes, apropriação de imagens documentais, de obras de arte famosas, imagens de seriados Netflix, quadrinhos, fotos icônicas de personagens da cultura pop. Trata-se de uma composição e edição de imagens fragmentadas, que juntas geram um fluxo informativo, visual, cinético e narrativo. O viés cinemático dessas composições com imagens heterogêneas é bastante relevante para entender as novas potencialidades do design de narrativas a partir da lente móvel. A imagem informacional das redes é híbrida, metamórfica (RANCIÈRE, 2013), e passa a assumir novas funções quando deslocadas e inseridas em montagens digitais, como vemos, por exemplo, nas imagens ativistas relacionadas aos acontecimentos no Brasil e no mundo – imagens sobre a Amazônia, os memes relacionados à desastrosa política de Bolsonaro, a sofisticada produção de ilustrações digitais relacionadas ao momento político atual. Ver Calendário Dissidente.
Operações de linguagem
A tênue fronteira entre o real e o documental das narrativas com imagens de banco de dados parece ser um dos pontos centrais. Em outras palavras, o termo “fake images” – cunhado por Manovich (2001) para descrever as montagens e composições de imagens digitais, realizadas por computadores e diversos softwares e aplicativos – representa a natureza de muitas imagens que circulam nas redes.
O termo “fake”, que no contexto usado pelo autor, não pode ser traduzido por “falso”, é empregado para conceituar a estética das sequências de imagens em movimento em composições digitais. O autor aponta a edição e a montagem como a chave das tecnologias do século XX e XXI para criar novas realidades. O fake está relacionado à criação de uma nova linguagem imagética, à estética da dissonância de estilos, à nova semântica e novas trocas emocionais entre diferentes elementos materiais.
As estratégias de edição apontadas por Manovich (2001) envolvem uso de banco de dados e resultam em novas formas estéticas, não podendo ser confundidas com fake news – termo empregado para designar notícias falsas da internet, manipulação e montagem de televisão, política partidária, etc., muito embora o procedimento técnico de montagem das imagens, possa ser o mesmo. Sugerimos, nesse contexto de montagem e assemblage, a adoção do termo “imagens ficcionais” na medida em que se trata de imagens reapropriadas para um fim artístico (mesmo que as imagens originais representam um fato ou objeto real, ou seja, imagens documentais). Da mesma forma, o termo “depth image” (VAN ESSEN, 2020) atualiza os procedimentos de colagem e edição escritos por Manovich com o auxílio de imagens geradas e interpretadas por inteligências artificiais. Ver Imagem deepfake.
Ao elucidar conceitos relacionados à cultura digital, Manovich (2001) traça um interessante paralelo com teorias aplicadas ao cinema e traz referências icônicas como o filme Man with a moving camera de Dzigo Vertov (1929), para ilustrar seus conecitos sobre as novas mídias. A multiplicidade de ações e procedimentos práticos e estéticos realizados no cinema de Vertov serve como exemplo para conceitos como composição digital, montagem, signos móveis, hierarquia de camadas dos objetos de mídia, interface e conteúdo, sistemas operacionais, linguagem de programação e novas estéticas e procedimentos (MANOVICH, 2001, p. 243).
Os procedimentos de copy e paste usados por Vertov (1929), assim como o da repetição e o loop de imagens, tão usados nos filmes – e explorados pelo cineasta – preconizam o GIF, formato extremamente utilizado na web, onde recursos como este caracterizam os novos formatos narrativos da era das redes. O conceito do loop cinemático se estende ao GIF e à sequência das imagens “aglutinadas” sobre o mesmo algoritmo temático, no caso, das mesmas hashtags do Instagram. Ver imagem GIF.
A sequência de imagens montadas em uma sequência cinética, ou visualizadas por meio da programação de dados, nos aplicativos, alteram o fluxo linear das narrativas. Assim, vemos que decodificar o mundo por meio de imagens manipuladas é relevante para o estudo das novas mídias: “as narrativas das novas mídias e as novas interfaces podem explorar novas possibilidades de composição e estética oferecidas pelos bancos de dados dos computadores” (MANOVICH, 2001, p. 10). O uso criativo e as diversas formas de usarmos imagens de banco de dados e uso de inteligências artificiais para produção estética são assuntos tratados em Aprendizagem de máquina e subjetividade.
Estabelecendo um recorte: as imagens ativistas
Retomando uma das categorias em que apontamos objetos de recorte para análise, nota-se que o conteúdo da mensagem das imagens ativistas se apresenta como o elemento central para organizar a manipulação de imagens e seus objetos visuais e verbais em diferentes técnicas. Como a quantidade de recursos e a manipulação de softwares e aplicativos é infinita, cabe aos designers e artistas saberem usar e misturar dados em novos formatos em pró de um discurso visualmente mais impactante. O desafio é justamente manter o fio narrativo em torno de uma comunicação visual, na qual a composição, a montagem e o encadeamento de imagens são essenciais para garantir a compreensão do argumento.
Estética da adição
As regras são claras: apropriar, copiar, colar, deslocar, codificar, juntar, subtrair, até depurar e finalizar. O principal desafio, na chave do design, parece ser descobrir novas formas de compor e contar uma história, considerando a dinâmica na imagem (o movimento das diversas formas de composição visual) como um elemento central na construção da subjetividade narrativa. A leitura de sequências de imagens dispostas lado a lado na tela do aplicativo Instagram, quando visualizadas por meio de hashtags, também é desafiadora, pois são imagens completamente heterogêneas, oriundas de diversas fontes e produzidas por diferentes autores.
Essas imagens documentais e “reais” são aglutinadas em torno de uma palavra-chave e estão subordinadas a este código escrito. A leitura dessa sequência de imagens juntas gera novas interpretações e outros significados a essas imagens “manipuladas” pelo código. Ou seja, dentro desse contexto temático da busca do algoritmo, tornam-se imagens ficcionais, pois se deslocaram e agora pertencem a uma nova operação de linguagem com imagens digitais, especificamente de banco de dados.
Os cineastas Godard e Eisenstein são boas referências cinemáticas para entendermos a estética do GIF, dos clipes, do “InstaStories”, do Snapchat, TikTok e outros formatos de audiovisual expandido. O conceito de imagem expandida nos ajuda a entender a hibridação desses meios nessas colagens audiovisuais nas quais a edição computacional opera a manipulação e a junção das imagens estáticas e fílmicas, mescladas em uma mesma narrativa (Santaella, 2003). Em O Destino das imagens (2013), Rancière faz referência ao filme Histoire(s) du cinéma, de Godard, para apresentar o conceito da “frase-imagem”. A narrativa do filme se dá pela justaposição de imagens heterogêneas, editadas a partir de imagens aleatórias dispostas lado a lado. Desta maneira, formam uma mensagem a partir dessa narrativa composta por imagens fragmentada, uma frase-imagem (RANCIÈRE, 2013).
Esse conceito se aplica às narrativas visualizadas a partir das imagens de banco de dados. Nesse caso, a visualização da frase-imagem é organizada em torno da palavras-chave, em um contexto em que as imagens estão subordinadas a um código escrito, um metadado, que passa a ser mais que um dado numérico: ele é a peça-chave da construção narrativa em redes como Instagram e Facebook. Nesse ponto, concordamos com a visão de Falci (2012) e Manovich (2018), para quem os metadados permitem que o computador recupere informações e as organizem em um conjunto de imagens que remetem a uma narrativa de autoria compartilhada, em determinada interface, como o Instagram, no caso. Ou seja, a narrativa visual da qual estamos tratando obedece a uma lógica inversa à lógica da narrativa textual (literária), na medida em que os fragmentos colocados lado a lado, na maioria das vezes são aleatórios e não estão dispostos em uma sequência lógica, não obedecem a um enredo preestabelecido, mas constroem a poética narrativa das redes.
Cultura regenerativa e remixada
Trata-se da adição de imagens de diversas fontes (de autoria muitas vezes desconhecida) em um remix de imagens apropriadas que caracterizam a cultura global atual. Estas novas formas de produção de linguagem, colaboração e coletividade fazem parte do processo criativo. Essas apropriações também são realizadas por meio de uso de imagens ficcionais manipuladas pelas inteligências artificiais. Ver Imagem deepfake.
Para Eduardo Navas (2016), não podemos pensar em criatividade sem considerar a adição de imagens de várias naturezas. O autor utiliza o termo “regenerative remix” na qual a efemeridade do uso de imagens, texto e som digitalmente produzidos e reproduzidos e eficientemente arquivados em dados podem ser usados para diversas propostas criativas. Este conceito também diz respeito à conectividade, ao uso dos dispositivos móveis, câmeras de celulares e ao fluxo constante de informação trocada nas redes sociais e na web. O autor resgata a figura do DJ como a figura desse homem contemporâneo, produtor de linguagem – ícone analisado por Bourriaud em Radicante (2011).
Nesse sentido, as mídias sociais podem ser consideradas parte do remix regenerativo, em termo de discurso, pois não há um formato específico para definir as manifestações de linguagem. Elas acontecem quando um elemento é reciclado de uma forma que seja reconhecível em uma nova proposta visual ou auditiva, disponível em um formato digital. A reciclagem desse material disponível nas redes é a principal característica da cultura regenerativa. O upload constante e as postagens dos usuários são centrais para que as atividades artísticas aconteçam. Ou seja, o design de narrativas com imagens do banco de dados depende da produção coletiva e colaborativa das redes sociais. Na chave da cultura regenerativa, conseguimos ilustrar como se dá a produção dessas imagens-mensagens pelos cidadãos engajados com os temas e as manifestações ativistas. Com os mesmos objetos materiais (imagens, textos, vídeos que circulam nas redes) e com as mesmas ferramentas digitais (softwares para ilustração digital, câmeras e scanners nos smartphones e as funções e filtros de “embelezamento” e edição disponíveis nos aplicativos), os “DJs/designers ativistas” conseguem produzir infinitas combinações e composições gráficas. E, na prática, adicionam novos fragmentos às narrativas visuais contínuas, com uploads diários de milhares de posts por dia.
Navas (2016) explica que as novas manifestações de linguagem da cultura regenerativa acontecem quando um elemento é reciclado de uma forma que seja reconhecível em uma nova proposta visual. A reciclagem desse material, disponível e apropriado nas redes é a principal característica da cultura regenerativa. Na visão do autor, “as mídias sociais podem ser consideradas parte do remix regenerativo, em termos de discurso. Esses se alimentam constantemente do fluxo de imagens e textos e áudios das redes sociais” (Ibid p. 101-105). E, na prática, constituem narrativas fragmentadas e contínuas, com uploads diários e milhares de posts por dia.
Notamos que as operações informacionais e criativas que ocorrem na produção cotidiana de uma imagem-mensagem resultam em uma peça gráfica misturada e apropriada, por meio de diferentes intervenções: uso de colagens de ilustração vetorial e fotografias; uso de tipografia manual, escaneada e trabalhada como ilustração digital; uso de fotografia documental e de linguagem verbal. A prática regenerativa também é evidenciada em posts nos quais há uma apropriação visual explícita. O remix de imagens de fontes e de linguagens diferentes reunidas em uma mesma produção artística é uma das características principais deste vocabulário estético.
Cultura visual urbana e imagens informacionais
Para ampliar os conceitos de cultura visual digital e estética de banco de dados fundamentados por Manovich (2018), Navas (2016) e Vesna (2007), cabe mencionar um outro experimento gráfico que norteou o projeto da tese e a definição do tema da pesquisa. Grafite e pixo: jogos estéticos urbanos [Sidenote: O audiovisual Grafite e pixo: jogos estéticos urbanos foi realizado por Didiana Prata, Loren Bergantini, Luciana Paulillo e Sergio Venancio para a disciplina Processos experimentais em design visual, ministrada pelas Profas. Clice Mazzilli e Cibele Taralli no curso de Pós-graduação em Design, na FAU-USP, em 2017. Disponível em https://youtu.be/i-DpRJSNDv0.] elucida a vocação da transformação das imagens factuais das redes em narrativas de caráter ficcional, na medida em que se transformam em estratégias artísticas de visualização de dados com o objetivo de criar uma narrativa crítica sobre determinado assunto.
O audiovisual consiste numa colagem polifônica de experimentos de criação de narrativas com imagens de banco de dados, criados em contraposição ao Programa Cidade Linda, lançado pelo prefeito de São Paulo, João Dória, em 2 de janeiro de 2017. Esse episódio político é emblemático na medida em que elucida aspectos fundamentais relacionados à produção de linguagem no espaço urbano e demonstra a arbitrariedade no julgamento do que é considerado arte urbana para o então prefeito. Uma lei municipal passou a considerar ilegal a atividade do grafite e os artistas, grafiteiros e pixadores, criminosos. Como ação repressora e midiática a prefeitura apagou uma série de trabalhos emblemáticos na paisagem de São Paulo, substituindo-os por uma fina camada de tinta da cor cinza. A produção de arte urbana, como exemplo de manifestação política e sociocultural dá algumas pistas para um mapeamento etnográfico de diversas partes da cidade de São Paulo, onde a presença do pixo, é vista como expressão transgressora da população marginalizada, da periferia; e a do grafite, como produção mais planejada para acontecer em determinada superfície (muro, parede, pilastra, empena cega da cidade).
O audiovisual Grafite e pixo: jogos estéticos urbanos explora algumas operações de linguagem e traz uma série de experimentos nos quais designers, programadores e vídeo-artistas exploraram alternativas de usos e desdobramentos das imagens apropriadas. Questionam a institucionalidade da arte, a cidade como interface e a representação do espaço urbano e do grafite e do pixo na cidade, por meio de imagens produzidas e veiculadas por cidadãos. Ou parafraseando Rancière, por artistas anônimos que representam a estética cotidiana e a partilha do sensível (RANCIÈRE, 2005).
Nesse experimento, notamos que a hashtag é responsável pelo deslocamento da imagem em um contexto de montagem que se assemelha às técnicas do cinema e da imagem expandida. O viés cinemático dessas composições com imagens heterogêneas, capturadas por banco de dados se mostrou relevante para entender as novas potencialidades do design gráfico e da imagem mobile. Ao agenciar os experimentos que compõem as narrativas de adição e subtração e apropriação no Instagram, o autor (designer, artista ou usuário da rede) participa do jogo de construção da cultura regenerativa com imagens das redes.
O objeto da tese
A experiência de traçar um diálogo entre referências teóricas e um experimento gráfico instigou a elaboração de uma análise crítica e a prática do design como meio e ferramenta. Foi uma experiência essencial na definição do problema da tese e na criação do experimento gráfico Calendário Dissidente.
Constatamos a interdependência da indexação, do código escrito – da palavra-chave associada à imagem – e a visualização desta na rede. E verificamos como os algoritmos são elementos condicionantes para a visualização de um conjunto de imagens temáticas e como modulam experiências visuais específicas, relacionados a este agregador/legenda aplicada pelo usuário na hora da postagem.
A reciclagem do material disponível nas redes é a principal característica da cultura regenerativa (NAVAS, 2016). O upload constante e as postagens dos usuários são centrais para que as atividades artísticas aconteçam. Ou seja, o design de narrativas com imagens do banco de dados depende da produção coletiva e colaborativa das redes sociais. Trabalhos artísticos que abordam paradigmas políticos e socioculturais – pautando temas como meio ambiente, política, decolonialismo, feminismo entre outros – tratados recentemente por artistas e instituições brasileiras e internacionais, se alimentam constantemente do fluxo de imagens e textos e áudios das redes sociais.
O recorte da pesquisa: as hashtags dissidentes
A pesquisa faz um recorte temporal e temático para a coleta de dados por meio das hashtags ativistas. A primeira fase consistiu na coleta de imagens da produção estética do Instagram relacionada à representação imagética de grandes eventos e manifestações culturais, sociais e políticas no Brasil. A coleta de dados iniciou-se com a prisão do ex-presidente Lula em abril de 2017. A partir de então, feito um acompanhamento específico das hashtags #elenão, #designativista, #desenhosopelademocracia, #coleraalegria, e #mariellepresente durante o período de maior volume de produção imagética – entre o primeiro e o segundo turno (5 de outubro de 2018 a 5 de novembro de 2019).
Consideramos que essas hashtags são as mais representativas das dissidências, criadas por acontecimentos específicos que marcaram esse período de polarização política. Por meio dessas narrativas informacionais e híbridas (no sentido de reunirem características formais e funcionais do campo do design, da comunicação, da tecnologia, da cultura e da política), apreendemos apoética e o caráter coletivo dessas imagens-mensagens e a potencialidade do tema de pesquisa.
Após o acompanhamento diário das postagens com essas hashtags, envolvendo primeiramente a análise cognitiva das narrativas, iniciamos o esboço de uma estratégia projetual a fim de traçar uma metodologia para o trabalho.
Além da metodologia de banco de dados, utilizamos o software livre Stogram para download de todas as imagens postadas no Instagram pelas hashtags escolhidas:
- #lulalivre (32.731 postagens em 24 horas) – relacionada à prisão do ex-presidente Lula em 14 de abril de 2017;
- #mariellepresente (736.000 imagens em 365 dias) – imagens capturadas desde o dia 14 de março de 2018, data do assassinato de Marielle Franco, então vereadora do Estado do Rio de Janeiro – até completar um ano da sua morte, em 13 de março de 2019;
- #elenão – captura das imagens produzidas no dia das manifestações nacionais “#elenão”, em 29 de outubro de 2018.
O processo de coleta e visualização dessas imagens, assim como a criação dos experimentos visuais decorrentes dessa imageria e o uso de inteligência artificial para a classificação de uma amostragem de mais de um milhão de imagens, serão explicados e aprofundados nos próximos capítulos.